
Depois sentou-se na cadeira de braços ao lado da mesa e sem qualquer preâmbulo, assim de chofre, começou a contar à rapariga uma coisa que tinha acontecido há anos no Noroeste. Falava numa voz tipo «vamos ao que importa», sem ênfases nem pausas, embora de vez quando repetisse a mesma frase com pequenas modificações, como se fosse importante que cada pormenor saísse exactamente como tinha acontecido.
Ao princípio, Brigid O'Shaughnessy escutava com pouca atenção, obviamente mais surpreendida com o facto de ele lhe contar uma história do que interessada nela. Parecia mais empenhada em descobrir a razão por que Spade lhe contava a história do que em seguir a história propriamente dita. Mas depois, à medida que a história se desenrolava, começou a interessar-se cada vez mais por ela e acabou por ficar imóvel e absorta.
Um dia, um homem chamado Flitcraft saíra do seu escritório, em Tacoma, para ir almoçar, e nunca mais voltara. Nessa tarde não apareceu para jogar golf às quatro horas, embora tivesse sido ele a combinar o jogo menos de meia hora antes de sair para almoçar. A mulher e os filhos nunca mais o viram. Parecia dar-se muito bem com a mulher. Tinha dois rapazes, um com cinco e o outro com três. Tinha uma casa sua nos arredores de Tacoma, um Packard novo e todos os demais confortos de um americano bem instalado na vida.
Flitcraft tinha herdado do pai setenta mil dólares e, com o seu negócio de bens imobiliários, tinha ganho qualquer coisa como duzentos mil dólares até à altura em que desapareceu. Tinha todos os assuntos em ordem, embora nada indicasse que tinha estado a arrumá-los para poder depois desaparecer. Havia mesmo, por exemplo, um negócio francamente vantajoso que ia fechar-se no dia a seguir àquele em que ele desapareceu. Nada parecia indicar que tivesse consigo mais de cinquenta ou sessenta dólares na altura em que partiu. Nada nos seus antecedentes, tão rotineiros, poderia justificar a suspeita de vícios secretos ou mesmo de que existisse outra mulher na sua vida, embora pudesse sempre ser possível.
«Desapareceu assim», disse Spade, «como um punho fechado quando se abre a mão.»
Quando chegou aqui, tocou o telefone.
«Estou... M. Cairo?... Sim, sou eu. Pode passar aqui - na Post Street - agora? ... Sim, acho que sim.» Olhou para a rapariga, contraiu os lábios e depois disse depressa: «Miss O'Shaughnessy está cá e quer .falar consigo.»
Brigid O'Shaughnessy franziu as sobrancelhas e mexeu-se na cadeira, mas não disse nada.
Spade desligou e disse: «Não tarda aí. Bem, isto passava-se em 1922. Em 1927, estava eu a trabalhar numa das maiores agências de detectives de Seattle. Mrs. Flitcfraft apareceu lá e disse-nos que alguém tinha visto um homem em Spokane muito parecido com o marido. Fui a Spokane. E era mesmo o Flitcraft. Vivia em Spokane há uns poucos de anos como Charles - era o seu primeiro nome - Pierce. Tinha um negócio de automóveis que lhe rendia vinte a vinte e cinco mil dólares por ano, uma mulher, um bebé e uma casa sua nos arredores. Quando estava bom tempo costumava jogar golf depois das quatro da tarde.»
Ninguém lhe tinha dado indicações precisas sobre o que havia de fazer quando encontrasse Flitcraft. Estava a falar com ele no seu quarto no Devenport. Flitcraft não se sentia nada culpado. Tinha deixado a sua primeira família em boa situação económica e o que depois fizera parecia-lhe perfeitamente normal. A única coisa que o preocupava era fazer entender a Spade essa normalidade. Nunca tinha contado a sua história a ninguém anteriormente, o que não o ajudava a tornar clara essa normalidade. Tentava agora pela primeira vez.
«Percebi-o logo», disse Spade a Brigid O'Shaughnessy, «mas Mrs. Flitcraft não. Pensou que ele estava doido. Talvez estivesse. De qualquer maneira acabou tudo em bem. Ela não queria escândalos e além disso, depois da partida que ele lhe tinha pregado - era assim que ela via as coisas - não queria mais nada com ele. Houve portanto um divórcio calmo e o assunto ficou arrumado.
O que lhe aconteceu foi o seguinte: quando ia almoçar, passou por um prédio em construção. Uma viga ou qualquer coisa do género caiu do oitavo ou do décimo andar e veio tombar mesmo ao seu lado, no passeio. Passou-lhe mesmo de raspão, mas não lhe tocou. Houve foi uma pedra do passeio que se partiu, saltou e o feriu na cara. Foi só um arranhão, mas ainda tinha a cicatriz quando o vi. Passava-lhe um dedo por cima - assim, todo contente - a contar-me a história. Apanhou um grande susto, claro, dizia ele, mas ficou mais chocado do que propriamente assustado. Sentiu-se como alguém que tivesse levantado a pálpebra da vida e tivesse resolvido olhar para o que se passava lá dentro.»
Flitcraft tinha sido um bom cidadão e um bom marido e pai, não por qualquer espécie de imposição do exterior, só porque era um homem que sentia mais conforto em caminhar a passo certo ao lado dos outros. Era o que sempre tinha querido. As pessoas que conhecia eram assim. A sua vida era um negócio limpo, arrumado, são, respeitável. E de repente a queda de uma viga tinha-lhe mostrado que a vida, no fundo, não tinha nada a ver com essas coisas. Ele, o bom cidadão-marido-pai podia ser varrido de um momento para o outro entre o escritório e o restaurante pela queda acidental de uma viga. Percebeu então que as pessoas morriam assim ao calha e viviam só enquanto um cego acaso as protegia.
Não era tanto a injustiça do facto que o perturbava: aceitou-a logo a seguir ao primeiro abalo. O que o perturbava era a descoberta de que, a resolver sensatamente todos os seus assuntos, acabara por estar a trocar e não a acertar o passo com a vida. Dizia que ainda não tinha andado vinte passos depois da queda da viga e já sabia que nunca mais teria sossego até conseguir adaptar-se àquela nova imagem da vida que entrevira a brilhar. Enquanto almoçava tinha estado a pensar nas maneiras de se adaptar. A vida podia acabar para ele assim à toa, pela queda de uma viga: ia mudar de vida também à toa, por um simples desaparecimento. Amava a sua família, dizia, tanto como supunha ser costume, mas tinha a certeza que os deixava em bastante boa situação económica e o seu amor por eles não era amor que fizesse doer a ausência.
«Nessa tarde foi para Seattle», continuou Spade, «e de lá apanhou o barco para S. Francisco. Durante uns poucos de anos andou por aqui às voltas e depois acabou por ir parar ao Noroeste, e instalar-se em Spokane, e casar-se. A sua segunda mulher não se parecia com a primeira mas, mesmo assim, eram mais parecidas do que diferentes. Está a ver, o género de mulheres que jogam bons jogos de golf e bridge e gostam de novas receitas de saladas. Não estava arrependido do que tinha feito. Parecia-lhe perfeitamente normal. Acho que nem se chegou a aperceber de que tinha acabado naturalmente por mergulhar no mesmo tipo de rotina de que tinha saído em Tacoma. Mas é essa a parte da história de que eu sempre gostei. Ele adaptou-se ao facto de as vigas caírem; depois, não caiu mais nenhuma e ele adaptou-se ao facto de não caírem.»
«Perfeitamente fascinante», disse Brigid O'Shaughnessy. Levantou-se da cadeira e ficou de pé mesmo em frente dele. Olhos muito abertos num olhar profundo. «Não preciso de lhe dizer até que ponto me prejudicará definitivamente se escolher o partido de Cairo quando ele chegar.»
Spade sorriu levemente sem abrir os lábios. «Não precisa de me dizer, não», concordou.
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