sábado, dezembro 31, 2005

Vasco Graça Moura


porque hoje termina mais um ano

porque hoje termina mais um ano
com seus surdos rumores, pouca luz
e porque o tempo treme e é no inverno
e é no inverno que a arte nos ilude

e porque a arte é por demais injusta
e o tempo transgrediu os seus limites
e ambos vivem só de se imitarem
digo que nunca errou a juventude

porque a arte é o princípio da morte e nem
(e nem sempre) teremos a coragem
a consciência ou o rigor bastantes
para tocá-las na sua ressonância

Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessenta Anos, Edições ASA, 2002, p. 19.

segunda-feira, dezembro 26, 2005

L'Homme au verre de vin



L'Homme au verre de vin

numa sala do louvre dedicada à
pintura espanhola há um quadro
atribuído à escola portuguesa
de quatrocentos. é o

homem do copo de vinho, ou, dir-se-ia,
do copo de solidão; e é possível
que seja flamengo e triste. mas tomemos
a origem indicada como boa

para esse homem que vai entrar na noite,
gravemente na noite, como numa
parda natureza. eu nunca pude
obter um slide dessa imagem,

um bilhete-postal, ou quaisquer dados
para situar aquela estranha placidez
de quem vai encontrarno vinho umas verdades, de
alguém que vou visitar de vez em quando,

para beber um copo em companhia.
é possível que fosse na flandres
algum feitor discreto e rico ou que em lisboa fosse

segurando uma alcachofra minuciosa
que o pintor depois terá mudado
para tornar mais intenso o sentimento
ou mais real a sua digna sede.

Vasco Graça Moura, Antologia dos sessenta anos, Edições ASA, 2002, p. 37.

domingo, dezembro 25, 2005

sexta-feira, dezembro 23, 2005

Jerome K. Jerome


A NOSSA FESTA DE FANTASMAS

Era Véspera de Natal.

Começo desta maneira porque é a maneira correcta, ortodoxa e respeitável de começar, e eu fui educado de uma maneira correcta, ortodoxa e respeitável, tendo sido ensinado a agir sempre de uma forma correcta, ortodoxa e respeitável - e nunca mais perdi esse hábito.

Claro que, diga-se de passagem, é perfeitamente desnecessário mencionar a data. O leitor experiente não precisa que eu lhe diga que era Véspera de Natal. É sempre Véspera de Natal numa história de fantasmas.

A Véspera de Natal é a grande noite de gala dos fantasmas, a sua festa anual. Na Véspera de Natal, toda a gente que é alguém na Terra dos Fantasmas - ou antes, falando-se de fantasmas, dever-se-ia dizer, suponho, toda a gente que é ninguém - aparece para se mostrar, para ver e ser visto, para se passear e exibir aos outros as mortalhas coleantes e as roupas com que foram para o túmulo, para criticar o estilo e desdenhar do aspecto uns dos outros.

O «Desfile da Véspera de Natal», como penso que eles próprios lhe chamam, é uma cerimónia sem dúvida primorosamente preparada e ansiada por todos os habitantes da Terra dos Fantasmas, especialmente pelo grupo dos elegantes, como os Barões assassinados, as Condessas vitimadas e os Condes que vieram com o conquistador e assassinaram os seus familiares, morrendo loucos.

Podemos estar certos de que treinam energicamente gemidos profundos e esgares demoníacos. Provavelmente ensaiam durante semanas gritos horripilantes e gestos de gelar o sangue. As correntes ferrugentas e punhais ensanguentados são inspeccionados e postos a funcionar convenientemente e os lençóis e mortalhas, cuidadosamente postos de lado desde a festa do ano anterior, são retirados, sacudidos, remendados e arejados.

Oh, a noite de 24 de Dezembro é uma noite excitante na Terra dos Fantasmas!

Os fantasmas nunca aparecem na Noite de Natal propriamente dita, como devem ter reparado. Provavelmente, a Véspera de Natal foi de mais para eles, não estão habituados a divertirem-se. Durante cerca de uma semana após a Véspera de Natal, os cavalheiros fantasmas sentem-se, com toda a certeza, muito responsáveis e passeiam­-se de um lado para o outro tomando a resolução solene de ficarem em casa na Véspera de Natal seguinte; por seu lado, as damas es­pectros mostram-se incoerentes e petulantes e, sem nenhuma razão aparente, dadas a rebentar em lágrimas e a abandonar a sala apres­sadamente mal alguém lhes dirige a palavra.

Os fantasmas sem qualquer posição a manter - meros fantasmas de classe média - de vez em quando, penso eu, fazem algumas assombrações nas suas noites de folga: na Noite das Bruxas e no solstício de Verão, e alguns deles chegam mesmo a participar em acontecimentos muito específicos - por exemplo, para celebrar o aniversário do enforcamento do avô de alguém ou para vaticinarem uma desgraça.

O vulgar fantasma britânico gosta mesmo de agoirar. Mandem-no profetizar uma desgraça a alguém e ele sentir-se-á feliz. Deixem-no forçar a entrada numa casa pacífica e pô-la de pernas para o ar por ter previsto um funeral, ou uma bancarrota ou por ter dado a entender que uma desgraça se aproximava ou qualquer outro desastre terrível, acerca do qual ninguém no seu perfeito juízo quereria saber mais cedo, e cujo conhecimento não tem qualquer utilidade, e logo ele sente que junta o útil ao agradável. Nunca perdoaria a si próprio se alguém da sua família tivesse algum problema e ele não tivesse lá estado alguns meses antes, brincando no relvado ou balan­çando-se na grade da cama de qualquer pessoa. Depois, há os fan­tasmas muito novos, ou muito conscienciosos (sentem na consciência o peso de um testamento perdido ou de um número ainda não descoberto) e que passam o ano todo a fazer assombrações; e há também o fantasma niquento, indignado por ter sido enterrado no caixote do lixo ou no lago da aldeia, e que nunca dá uma única noite de sossego aos paroquianos até alguém lhe pagar um funeral de primeira classe.

Mas estes são excepções. Como disse, o fantasma normal e tra­dicional só faz a sua aparição uma vez ao ano, na Véspera de Natal, e fica satisfeito.

Porquê na Véspera de Natal, entre todas as noites do ano, é algo que nunca consegui perceber, pois é, invariavelmente, uma das mais desanimadoras noites para andar na rua - está frio e há lama e chuva por toda a parte. Para além disso, tenho a certeza de que na época de Natal todas as pessoas já estão suficientemente ocupadas numa casa cheia de parentes vivos e não querem os fantasmas dos parentes mortos a vaguear por ali.

Deve haver algo de fantasmagórico na atmosfera do Natal, algo relacionado com a atmosfera pesada, quente e húmida e que atrai os fantasmas, tal como a humidade das chuvas de Verão faz aparecer os sapos e os caracóis.

E não são só os fantasmas que aparecem sempre na Véspera de Natal: os vivos falam sempre deles na Véspera de Natal. Sempre que cinco ou seis pessoas que falem inglês se sentam à lareira na Véspera de Natal, começam logo a contar histórias de fantasmas. Nada nos satisfaz mais na Véspera de Natal do que ouvir contar anedotas autênticas sobre espectros. É uma época fantástica e festiva e nós adoramos pensar em campas, cadáveres, assassínios e sangue.

Há muitas coisas parecidas nas nossas experiências fantasma­góricas, mas claro que a culpa disso cabe apenas aos fantasmas, que nunca experimentam truques novos e se ficam sempre pelos antigos e garantidos; como consequência, depois de participarmos numa festa na Véspera de Natal e de ouvirmos seis pessoas relatarem as suas aventuras com espíritos, nunca mais precisaremos de ouvir mais histórias de fantasmas. Escutar mais histórias de fantasmas depois disso seria como assistir a duas comédias ridículas ou ler dois jornais cómicos - a repetição seria cansativa.

Há sempre o jovem que certo ano foi passar o Natal numa casa de campo e que na Véspera de Natal foi posto a dormir na ala oci­dental. Então, a meio da noite, a porta do quarto abre-se silencio­samente e alguém - geralmente uma senhora em camisa de dormir - entra devagar e senta-se na cama. O jovem pensa que deve ser uma das visitas ou algum parente da família, embora não se lembre de alguma a vez a ter visto; julga que ela não conseguia adormecer e que, sentindo-se sozinha e desamparada, veio ao quarto dele para conversar. Não faz a mínima ideia de que se trata de um fantasma: é tão ingénuo. No entanto, ela não fala; e quando ele volta a olhar. já ela desapareceu!

Quando o jovem relata o acontecimento ao pequeno-almoço na manhã seguinte, perguntando às senhoras presentes se fora alguma delas, todas asseguram que não; o anfitrião, pálido, suplica-lhe que não fale mais do assunto, e o jovem acha que é um pedido estranho,

Depois do pequeno-almoço, o anfitrião leva o jovem para um canto e explica-lhe que o que ele viu foi o fantasma de uma senhora que tinha sido morta ou que assassinara alguém naquela mesma cama - não interessa muito qual das duas situações: pode-se ser um fantasma por se ter assassinado alguém ou por se ter sido morto, é como preferirem. O fantasma assassino é talvez o mais popular; mas, por outro lado, as pessoas assustam-se mais com um fantasma de alguém assassinado, que assim pode exibir as feridas e gemer.

Há também o convidado céptico - diga-se de passagem que é sempre o convidado que é levado à certa nestas coisas. Um fantasma nunca presta muita atenção à sua própria família: quem ele gosta de assustar é «o convidado»; este, depois de ter escutado a história de fantasmas contada pelo seu anfitrião na Véspera de Natal, ri-se e diz que não acredita em fantasmas e que para o provar dormirá no quarto assombrado naquela mesma noite.

Toda a gente lhe pede para não ser imprudente, mas ele persiste na sua insensatez e sobe despreocupadamente para o Quarto Amarelo (ou qualquer outra cor que o quarto assombrado possa ter) com uma vela na mão, desejando a todos uma boa noite e fechando a porta.

Na manhã seguinte aparece com cabelo branco, da cor da neve.

Não conta a ninguém o que viu: é demasiado horrível.

Também existe o convidado corajoso: vê um fantasma, sabe que é um fantasma e observa-o enquanto ele entra no quarto e desapa­rece através do lambril; e depois, como o fantasma não dá sinais de querer voltar - e, portanto, não vale a pena ficar acordado -, resolve dormir.

Não diz a ninguém que viu o fantasma para não assustar as pessoas – há quem se assuste tanto com fantasmas -, mas decide esperar pela noite seguinte para ver se a aparição surge de novo.

De facto, aparece de novo; desta vez, levanta-se da cama, veste­-se, penteia-se e segue-o; é então que descobre uma passagem secreta que liga o quarto à adega - uma passagem que certamente fora bastante utilizada nos maus velhos tempos de antanho.

A seguir, temos o jovem que acordou a meio da noite com uma sensação estranha e encontrou o seu tio solteiro e rico aos pés da cama. O tio rico sorri de uma forma estranha e desaparece. O jovem levanta-se imediatamente e olha para o seu relógio: tinha parado às quatro e meia porque se esquecera de lhe dar corda.

No dia seguinte, começa a investigar e descobre que, estranha­mente, o seu tio rico, de quem ele era o único sobrinho, tinha casado com uma viúva com onze filhos às onze e quarenta e cinco precisa­mente, havia apenas dois dias.

O jovem não tenta explicar aquelas estranhas circunstâncias. A única coisa que faz é atestar a veracidade da sua narrativa.

E, para mencionar outro caso, há o senhor que, após um jantar de mações, volta à noite para casa, reparando então numa luz que emergia de uma abadia em ruínas; aproxima-se sorrateiramente e espreita pelo buraco da fechadura, vendo o fantasma de uma «freira cinzenta» beijando o fantasma de um monge castanho; fica tão cho­cado e amedrontado que desmaia imediatamente, sendo descoberto na manhã seguinte caído contra a porta, ainda sem fala e apertando com toda a força na mão a sua fiel chave de casa.

Todas estas coisas acontecem na Véspera de Natal, são todas contadas na Véspera de Natal. Pois, contar histórias de fantasmas numa outra noite que não a de vinte e quatro de Dezembro seria impossível na sociedade inglesa tal como é hoje.

Jerome K. Jerome, ensaio incluso na colectânea Fantasmas para o Natal, Edições ASA, 1998, (tradução de Maria Dulce Guimarães da Costa), p. 9.

sábado, dezembro 17, 2005

Shepard


INACESSÍVEL LILLIE

Em 1890, bem nos confins do fronteiriço Texas, o juiz Roy Bean apaixonou-se perdidamente por uma fotografia da actriz Inglesa Lillie Langtry, mundialmente conhecida como «The Jersey Lily». Poucas mulheres havia naquela agreste região, para além das cavalheiras todas empoadas e pintadas que costumavam atacar nos acampamentos dos operários que andavam a construir o caminho de ferro do Pacífico Sul. O crime, todo o tipo de crimes, florescia ao longo da fronteira do Rio Pecos e do Rio Grande, e a autoridade legal mais próxima ficava a mais de cento e sessenta quilómetros dali, em Fort Stockton. Os caminhos de ferro e os rangers desesperavam à procura de um árbitro, de modo que nomearam o dono de uma loja da cidade de tendas de Vinegaroon como seu juiz de paz. Roy Bean era um homem de ar severo, pequeno mas encorpado, com uns olhos ligeiramente melancólicos e farta barba branca. A sua natureza autocrática fazia dele o homem perfeito para aquela missão e, ao fim de pouco tempo, a sua palavra era já a lei incontestada a oeste do rio Pecos. Para a aplicar, criou o mais terrível dos castigos - não o enforca­mento, mas a expulsão para aquele vasto deserto adjacente, sem armas, sem dinheiro, sem botas, e, pior do que tudo, sem um cavalo.

Roy Bean tinha um urso preto de estimação chamado Bruno, que costumava ficar preso nos degraus do tribunal improvisado, o qual servia também de salão de bilhar, de saloon e de venda de todo o tipo de géneros. Por vezes, o juiz Bean desmanchava-se em confidências com o seu urso, depois uma rápida sessão no «tribunal», acabando sempre por lhe perguntar se achava que tinha sido feita justiça. Bruno dava uma patada nos degraus poeirentos e resfolegava e o juiz ia embora satisfeito. Subia para a sua carruagem de um só cavalo e desandava para um sítio tranquilo junto ao rio. Aí, à sombra de uma velha alfarrobeira, redigia as suas cartas à inacessível Lillie. Mandava-lhe notícias da fronteira selvagem. Pequenas histórias de todos os dias, sobre homens que tinha condenado por crimes menores como enfiar escorpiões pela blusa de uma prostituta abaixo, ou por crimes maiores como o roubo de cavalos. Dizia-lhe, todo vaidoso, que tencionava organizar um combate de boxe para o título mundial em Rio Grande Sand Flat, à revelia das autoridades americanas e mexicanas e também dos rangers. E mais lhe dizia, dizia-lhe que ele, Roy Bean, se tornara um deus na sua pequena região e que adorava a imagem dela e que ansiava encontrar-se com ela num belo dia de Primavera. De vez em quando, fazia uma pausa na sua escrita, tirava a fotografia já muito gasta do bolso do colete e saboreava o perfil da amada. Os olhos baixos; o poderoso nariz aquilino, não muito diferente do seu; os lábios ligeiramente entreabertos, como que prestes a murmurar o nome dele. Certa vez, chegou mesmo a pensar que tinha ouvido a voz dela. Que a ouvira falar com ele, directamente. Todo o seu corpo empinou de um salto, fazendo com que o cavalo, assustado, partisse à desfilada, e por pouco não perdia a preciosa fotografia para o vento do Texas. E foi assim que Roy Bean escreveu à actriz um sem-número de cartas, sempre no mesmo jeito, como se estivesse em diálogo com ela, como se ela estivesse sentada ali, ao lado dele, no assento da carruagem. Nunca recebeu resposta. Escreveu-lhe que tinha chamado «The Jersey Lily» ao seu tribunal e saloon em honra dela, mas nunca rece­beu resposta. Escreveu-lhe que tinha pendurado sobre o bal­cão do saloon uma reprodução do retrato dela pintado por John Millais, e que tinha decorado os cantos da moldura com flores de cacto. Ele próprio tinha feito a decoração. Escreveu­-lhe que nenhum homem estava autorizado a sentar-se ao bal­cão do saloon, debaixo do retrato dela, sem tirar o chapéu ou a arma. Não recebeu resposta. Por fim, depois de catorze anos de obsessão e nenhum prémio, escreveu-lhe que tinha rebap­tizado a cidade inteira: Langtry, Texas. Isto chamou a atenção dela. Lillie Langtry fez uma pausa momentânea numa digres­são transcontinental. Viajava de comboio, na sua «carruagem­-palácio» privada, a que não faltavam os lustres, os tapetes persas e painéis lacados representando cenas do Oeste Selva­gem. A «Sunset Route» do Pacífico Sul estava agora completa e a linha do caminho de ferro estendia-se desde Nova Orleães até às praias douradas de São Francisco. Lillie desceu da sua carruagem e mal os seus saltos de cetim pisaram as ruas poeirentas de Langtry, informaram-na de que o bom juiz morrera um mês antes. O seu sucessor, contudo, queria oferecer-lhe, em me­mória do saudoso Roy Bean, o martelo de juiz e a espingarda do falecido. Lillie Langtry aceitou o martelo e a espingarda e seguiu viagem.

4/7/94 (LANGTRY, TEXAS)

Sam Shepard, Atravessando o Paraíso, Difel, 1997, (tradução de José Vieira de Lima), p. 107.


sábado, dezembro 10, 2005

Dylan



Uma vez em Nova Iorque, eu e a minha mulher fomos à Rainbow Room, no cimo do Rockefeller Center, para ver o Frank Sinatra Jr. que estava a cantar com uma orquestra inteira. Porquê ele e não alguém do circuito hip? Porque assim não havia complicações e perseguições... sentia alguma afinidade com ele - acho que éramos praticamente da mesma idade e que ele era meu contemporâneo. De qualquer modo, o Frank era um óptimo cantor. Eu nem queria saber se ele era tão bom ou não como o pai - ouvia-se muito bem, e gostava da sua grande e barulhenta banda. Mais tarde veio sentar-se à nossa mesa. Obviamente que o espantara que alguém como eu o tivesse ido ver, mas quando se apercebeu de que eu gostava genuinamente de melodias de grande espectáculo, pôs-se mais à vontade e relaxou, disse que gostava de al­gumas das minhas canções, «Blowin' in the Wind» e «Don't Think Twi­ce», perguntou-me em que tipo de sítios é que eu tocava (eu tinha-me retirado e vivia como um eremita mas não lhe disse isso). Falou sobre o movimento dos direitos cívicos, disse que o pai tinha sido um activista dos direitos cívicos e que tinha lutado sempre a favor dos desprotegidos - que o pai até se sentia um deles. O Frank Jr. parecia bastante esperto, nada de falso, encenado ou pomposo na sua pessoa. Havia legitimidade no que fazia, e sabia quem era. A conversa foi-se fazendo.

- Como é que achas que te sentirias - disse - se descobríssemos que os desprotegidos afinal eram uns filhos da puta?

- Não sei - respondi - provavelmente não muito bem.

Olhando pela parede de janelas tinha-se uma espectacular vista sobre a cidade. Do cimo de sessenta andares, o mundo era diferente.

Passado um bocado, comprei uma flor vermelha para a minha mulher, uma das mais belas criaturas do mundo das mulheres, levantámo-nos, despedimo-nos do Frank e saímos.

Bob Dylan, Crónicas - volume I, Ulisseia (trad. de Bárbara Pinto Coelho), p. 97.

sexta-feira, dezembro 02, 2005

Pessoa


DO "ULTIMATUM"

(ALVARO DE CAMPOS)

Mandado de despejo aos mandarins da Europa!

Fora!

Fora tu, Anatole France, Epicuro de farmacopeia homeopática, ténia - Jaurés do Ancien Régime, salada de Renan-Flaubert em louça do século dezassete, falsi­ficada!

Fora tu, Maurice Barrès, feminista da Acção, Châteaubriand de paredes nuas, alcoviteiro de palco da pátria de cartaz, bolor da Lorena, algibebe dos mortos dos outros, vestindo do seu comércio!

Fora tu, Bourget das almas, lamparineiro das par­tículas alheias, psicólogo de tampa de brazão, reles snob plebeu, sublinhando a régua de lascas os mandamentos da lei da Igreja!

Fora tu, mercadoria Kipling, homem-prático, do verso, imperialista das sucatas, épico para Majuba e Colenso, Empire-Day do calão das fardas, tramp-steamer da baixa imortalidade!

Fora! Fora!

Fora tu, George Bemard Shaw, vegetariano do pa­radoxo, charlatão da sinceridade, tumor frio do ibsenismo, arranjista da intelectualidade inesperada, Kilkenny-Cat de ti próprio, Irish Melody calvinista com letra da Origem das Espécies!

Fora tu, H. G. Wells, ideativo de gesso, saca-rolhas de papelão para a garrafa da Complexidade!

Fora tu, G. K. Chesterton, cristianismo para uso de prestidigitadores de barril de cerveja ao pé do altar, adiposidade da dialéctiva cockney com o horror ao sabão influindo na limpeza dos raciocinios!

Fora tu, Yeats da céltica bruma à roda de poste sem indicações, saco de podres que veio à praia do naufrágio do simbolismo inglês!

Fora! Fora!

Fora tu, Rapagnetta-Annunzio, banalidade em caracteres gregos, "D. Juan em Pathmos" (solo de trombone) !

E tu, Maeterlinck, fogão do Mistério apagado! E tu, Loti, sopa salgada, fria!

E finalmente tu, Rostand-tand-tand-tand-tand-tand-tand-tand!

Fora! Fora! Fora!

E se houver outros que faltem, procurem-os aí p'ra um canto!

Tirem isso tudo da minha frente!

Fora com isso tudo! Fora!

Ai! Que fazes tu na celebridade, Guilherme Segundo da Alemanha, canhoto maneta do braço esquerdo, Bismark sem tampa a estorvar o lume?!

Quem és tu, tu da juba socialista, David Lloyd George, bobo de barrete frígio feito de Union Jacks?!

E tu, Venizelos, fatia de péricles com manteiga, caída no chão de manteiga para baixo?

E tu, qualquer outro, todos os outros, açorda Briand-Dato, Boselli da incompetência ante os factos, todos os estadistas pão-de-guerra que datam de muito antes da guerra! Todos! Todos! Todos! Lixo, cisco, choldra provinciana, safardanagem intelectual!

E todos os chefes de estado, incompetentes ao léu, barris de lixo virados p'ra baixo à porta da Insuficiência da Época!

Tirem isso tudo da minha frente!

Arranjem feixes de palha e ponham-os a fingir gente que seja outra!

Tudo de aqui para fora! Tudo de aqui para fora!

Ultimatum a eles todos, e a todos os outros que sejam como eles todos!

Se não querem sair, fiquem e lavem-se.

(...)

A Europa tem sede de que se crie, tem fome de Futuro!

A Europa quer grandes Poetas, quer grandes Es­tadistas, quer grandes Generais!

Quer o Político que construa conscientemente os destinos inconscientes do seu Povo!

Quer o Poeta que busque a Imortalidade ar­dentemente, e não se importe com a fama, que é para as actrizes e para os produtos farmacêuticos!

Quer o General que combata pelo Triunfo Cons­trutivo, não pela vitória em que apenas se derrotam os outros!

A Europa quer muitos destes Políticos, muitos destes Poetas, muitos destes Generais!

A Europa quer a Grande Ideia que esteja por dentro destes Homens Fortes - a ideia que seja o Nome da sua riqueza anónima!

A Europa quer a Inteligência Nova que seja a Forma da sua Matéria caótica!

Quer a Vontade Nova que faça um Edifício com as pedras-ao-acaso do que é hoje a Vida!

Quer a Sensibilidade Nova que reúna de dentro os egoísmos dos lacaios da Hora!

A Europa quer Donos! O Mundo quer a Europa!

A Europa está farta de não existir ainda! Está farta de ser apenas o arrabalde de si-própria! A Era das quinas procura, tacteando, a vinda da Grande Humanidade!

A Europa anseia, ao menos, por Teóricos de O-que-será, por Cantores-Videntes do seu Futuro!

Dai Homeros à Era das Máquinas, ó Destinos científicos! Dai Miltons à Época das Cousas Eléctricas, ó Deuses interiores à Matéria!

Dai-nos Possuidores de si-próprios, Fortes, Completos, Harmónicos, Subtis!

A Europa quer passar de designação geográfica a pessoa civilizada!

O que ai está a apodrecer a Vida, quando muito é estrume para o Futuro!

O que ai está não pode durar, porque não é nada!

Eu, da Raça dos Navegadores, afirmo que não pode durar !

Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!

Quem há na Europa que ao menos suspeite de que lado fica o Novo Mundo agora a descobrir? Quem sabe estar em um Sagres qualquer?

Eu, ao menos, sou uma grande Ânsia, do tamanho exacto do Possível!

Eu, ao menos, sou da estatura da Ambição Imperfeita, mas da Ambição para Senhores, não para escravos!

Ergo-me ante o sol que desce, e a sombra do meu Desprezo anoitece em vós!

Eu, ao menos, sou bastante para indicar o Caminho!

Fernando Pessoa, O Rosto e as Máscaras, Ática 1976, p. 71.