sexta-feira, setembro 30, 2005

BOCCACCIO



DE QUALQUER MANEIRA

O marido de Peronella regressa a casa e ela esconde o amante num tonel. Ora o marido acabara de o vender, mas ela assegura tê-lo por sua vez vendido a um homem que está precisamente dentro dele a ver se está em bom estado. O indivíduo sai então do seu esconderijo, faz com que o marido raspe o tonel e acaba por levá-lo consigo.

Em Nápoles - a história é recente - um homem pobre casou com uma bonita e graciosa rapariga chamada Peronella. Ele tinha a profissão de pedreiro, ela fiava. Ganhava pouco e viviam um dia melhor, outro pior. Ora um belo rapaz reparou um dia na rapariga e gostou dela. Fez-lhe então uma corte tão insistente que conseguiu obter os seu favores. A maneira como se encontravam era esta: Como o marido se levantava todas as manhãs muito cedo, a fim de ir para o trabalho ou a fim de o procurar, o conquistador andava ali por perto a ver quando ele saía. A rua onde o casal morava que se chama Avorio, era muito solitária e por isso nada era mais fácil do que entrar então em casa. Tais precauções foram muitas vezes coroadas do maior êxito.

Ora numa manhã em que Giannel Stignario (assim se chamava o rapaz) entrara em casa da amante e lhe fazia companhia, o marido, cuja ausência costumava durar o dia inteiro, regressou pouco depois de ter saído. Achou a porta fechada por dentro, bateu, e, enquanto batia, ia pensando: «Meus Deus, que o teu nome seja abençoado por todo o sempre! Fizeste-me pobre, mas, pelo menos, compensaste-me dando-me por mulher esta boa e honesta rapariga. Como ela correu o ferrolho logo que eu parti, a fim de que ninguém possa entrar e causar-lhe aborrecimentos!»

Peronella, que tinha ouvido o marido e reconhecido a sua maneira de bater, disse então:

- Ai de mim, Giannel, estou morta. É o meu marido, maldito seja, que voltou. Que quererá isto dizer? Nunca vem a casa a esta hora. Talvez te tenha visto entrar. Paciência. Por amor de Deus mete-te naquele tonel. Eu vou abrir a porta. Logo se verá por que razão voltou ele para trás.

Giannel saltou para dentro do tonel. Peronella foi então abrir a porta ao marido e disse-lhe de má catadura:

- Mas que novidade é esta de voltares assim para casa? Ao que vejo, não estás hoje para fazer nada e voltas com as ferramentas na mão. Por este andar de que vamos nós viver? Onde encontraremos pão? Se julgas que te deixo pôr a minha saia e as minhas outras roupas no prego estás muito enganado. Dia e noite não faço senão fiar (tanto que já nem tenho carne à volta das unhas) para que ao menos haja azeite suficiente na candeia. Homem, todas as vizinhas se espantam; troçam de mim e de tudo o que eu faço, de tudo o que eu suporto. E tu voltas-me de braços caídos quando devias estar na obra.

Dito isto Peronella desfez-se em lágrimas e prosseguiu:

- Oh! mas que desgraça a minha! Que sorte havia de ter! Em que má hora havia eu de ter nascido! Podia ter casado com um bom rapaz e não o quis por este indivíduo que não quer saber para nada da mulher. As outras divertem-se com os amantes (cada uma tem dois ou três) e mostram a Lua aos maridos, fazendo-os acreditar que é o Sol. Pobre de mim! Sou boa mulher e não é esse o meu género. É por isso que tenho uma pouca sorte assim. Mas porque não hei-de eu tê-los como as outras? Ouve, homem, estou a falar a sério. Se quisesse portar-me mal, achava forma para o meu pé. Não faltam por aqui bonitos rapazes que me acham a seu gosto e que me querem bem. Já me ofereceram dinheiro ou roupas e jóias se eu as preferisse. Mas não tenho disposição para isso porque a minha mãe educou-me de outra maneira. E tu voltas para casa quando devias estar no trabalho!

- Por Deus, mulher, não te rales tanto. Sei muito bem quem tu és, e ainda esta manhã me deste mais uma prova. A verdade é que fui à obra. Mas acho que também não estás ao corrente, como o que me aconteceu a mim. Hoje é dia de São Galeão e não se trabalha. Foi por isso que me vim embora. Mas não tem importância. Pensei em tudo e encontrei maneira de arranjar pão para mais de um mês. Estás a ver o homem que me acompanha? Vendi-lhe o tonel que nos enche a casa, tão grande é. Dá-me por ele cinco florins.

Peronella respondeu então:

- Muito bem, é o cúmulo. Tu és homem, andas por aqui e por ali. Devias saber o preço das coisas. E vendeste o tonel por cinco florins! Eu sou uma pobre mulher e por assim dizer nunca saio, mas, por causa do aborrecimento que nos causava em casa, vendi-o por sete florins a um freguês. Quando chegaste acabava ele de entrar para verificar se o tonel estava em bom estado.

O marido, ouvindo isto, não cabia em si de contente. Voltou-se para o homem que o acompanhava e disse-lhe:

- Vai com Deus, bom homem. Como já ouviste, a minha mulher vendeu-o por sete florins, quando tu só me oferecias cinco.

- Está bem, disse o indivíduo, afastando-se.

Disse então Peronella:

- Já que estás em casa, sobe e trata tu do negócio com o outro.

Giannel que estivera de ouvido alerta a fim de se preparar para qualquer perigo eventual, quando ouviu as palavras de Peronella, fez de conta que não tinha dado pela chegada do marido e pôs-se a gritar:

- Onde estás, boa mulher?

O marido apresentou-se.

- Estou eu aqui. Que queres tu?

- Mas quem és? Quero é falar com a senhora com quem tratei do assunto do tonel.

- Podes falar confiadamente. Sou o marido dela.

- Pois bem, o tonel parece em bom estado, mas dir-se-ia que lhe puseram lá dentro porcaria de conserva. Está todo besuntado não sei de quê, mas de uma coisa tão seca que não consegui raspá-Ia com a unha. Não o levo antes de o limparem bem.

Peronella interveio:

- Ah, mas não é por isso que deixamos de fazer negócio. O meu marido vai limpá-lo bem.

- Claro, disse o marido.

Largou a ferramenta, pôs-se em mangas de camisa, mandou acender uma candeia e pediu à mulher uma raspadeira. Depois do que entrou no tonel e começou a raspá-lo. Peronella, como que para vigiar o trabalho, meteu a cabeça na abertura do tonel, que era bastante estreita e também o braço e até o ombro. E dizia:

- Raspa aqui, e ali. Atenção! Olha que acolá não ficou bem raspado.

Assim ela estava, dando conselhos e guiando o trabalho.

Ora nessa manhã, Giannel não satisfizera os seus desejos antes de o marido chegar. Vendo que seria difícil conseguir satisfazê-los, aproveitou a ocasião que a Fortuna lhe dava. Encostando-se à mulher que obstruía inteiramente a abertura do tonel, levou a bom termo o seu juvenil desejo, tal como se pode ver, nas vastas planícies, os garanhões abrasados de amor assaltarem as éguas partas. Mais ou menos na altura em que teve plena satisfação, tudo estava limpo. Largou então a mulher, que levantou a cabeça, e o marido saiu do tonel. Peronella voltou-se para o amante:

- Pronto, bom homem. Pega na candeia e vai ver se está limpo a teu gosto.

Giannel examinou o interior, declarou que tudo estava bem e que se sentia contente. Deu os sete florins e mandou entregar o tonel em sua casa.

Boccaccio, Histórias Eróticas, Editorial Inova, 1972 (trad. de Urbano Tavares Rodrigues), p. 41.

domingo, setembro 18, 2005

Rubem Fonseca



“A gente pode iniciar uma queda-de-braço de duas maneiras: no ataque, mandando brasa logo, botando toda a força no braço imediatamente, ou então ficando na retranca, aguentando a investida do outro e esperando o momento certo para virar. Escolhi a segunda. Waterloo deu um arranco tão forte que quase me liquidou; puta merda!, eu não esperava aquilo; meu braço cedeu até metade do caminho, que burrice a minha, agora quem tinha que fazer força, que se gastar, era eu. Puxei lá do fundo, o máximo que era possível sem fazer careta, sem morder os dentes, sem mostrar que estava dando tudo, sem criar moral no adversário. Fui puxando, puxando, olhando o rosto de Waterloo. Ele foi cedendo, cedendo, até que voltamos ao ponto de partida, e nossos braços se imobilizaram. Nossas respirações já estavam fundas, sentia o vento que saía do meu nariz bater no meu braço. Não posso esquecer a respiração, pensei, essa parada vai ser ganha pelo que respirar melhor. Nossos braços não se moviam um milímetro. Lembrei-me de um filme que vi, em que os dois camaradas, dois campeões, ficam um longo tempo sem levar vantagem um do outro, e enquanto isso um deles, o que ia ganhar, o mocinho, tomava uísque e tirava baforadas de um charuto. Mas ali não era cinema não; era uma luta de morte, vi que o meu braço e o meu ombro começavam a ficar vermelhos; um suor fino fazia o tórax de Waterloo brilhar; sua cara começou a se torcer e senti que ele vinha todo e o meu braço cedeu um pouco, e mais, raios!, mais ainda, e ao ver que podia perder isso me deu um desespero, e uma raiva! Trinquei os dentes! O crioulo respirava pela boca, sem ritmo, mas me levando, e então cometeu o grande erro: sua cara de gorila se abriu num sorriso e, pior ainda, com a provocação grasnou uma gargalhada rouca de vitorioso, jogou fora aquele tostão de força que faltava para me ganhar. Um relâmpago cortou minha cabeça dizendo: agora!, e a arrancada que dei ninguém segurava, ele tentou, mas a potência era muita; seu rosto ficou cinza, seu coração ficou na ponta da língua, seu braço amoleceu, sua vontade acabou – e de maldade, ao ver que entregava o jogo, bati com seu punho na mesa duas vezes. Ele ficou agarrando minha mão, como uma longa despedida sem palavras, seu braço vencido sem forças, escusante, caído como um cachorro morto na estrada.”
(Extracto do conto "A força humana" in "64 contos de Rubem Fonseca", Companhia das Letras (2004)

Reinício

Retoma-se aqui a emissão depois de uma longa pausa. As forças da natureza, impiedosas, abateram-se sobre este pobre navio e deixaram-no à deriva por longo tempo. Quando finalmente se avistou terra, outras tarefas ingentes ocuparam a tripulação. Agora, com o regresso da calmaria, talvez este errante navegante possa aportar outra vez a novos cais. Veremos.