quarta-feira, novembro 30, 2005

Cesariny


O POETA CAI PELA SEGUNDA VEZ


O poeta chorava

o poeta buscava-se todo

o poeta andava de pensão em pensão

comia mal tinha diarreias extenuantes

mas buscava uma estrela, talvez a salvação.

O poeta era sinceríssimo, honesto, total.

raras vezes tomava o eléctrico

em podendo

voltava

não podendo

ver-se-ia

tudo mais ou menos

a cair

de vergonha

mais ou menos

como os ladrões


E agora o poeta começou a rir

rir de vós ó manutensores

da afanosa ordem capitalista

já riu de si-mesmo, de se ter suicidado

de ter tido diarreia de não pedir dinheiro

o poeta viu chegar a orquestra dos silêncios

primeiro quis só ouvir depois teve que olhar

depois comprou jornais foi para casa leu tudo

quando chegou à página dos anúncios

o poeta teve um vómito que lhe estragou

as únicas que ainda tinha

e pôs-se a rir do logro é um tanto sinistro

mas é inevitável é um bem é uma dádiva.


Tirai-lhe agora os versos que ele próprio despreza

negai-lhe o amor que ele mesmo abandona

caçai-o entre a multidão

crucificai-o de novo mas com mais requinte.

Subsistirá. É maior do que isso.

Prendei-o. Viverá de tal forma

que as próprias grades farão causa com ele

e matá-lo não é solução

o poeta

o poeta

O POETA

destrói-vos.

Mário Cesariny, burlescas, teóricas e sentimentais, Editorial Presença, 1972, p. 61

sexta-feira, novembro 25, 2005

Brederode Santos


Salvemos o Cavaco

Se às ambições da primeira adolescência quisermos chamar veleidades, então eu admito aqui uma antiga e frustrada veleidade de zoólogo. A vida virou-me para outras coisas e eu, levianamente, deixei os bichos entregues à bicharada. Mas cá dentro, bem fundo, fiquei armadilhado por um misto de curiosidade e de remorso, o que me leva a ser espectador atento de algumas séries da televisão sobre o mundo animal. Por vezes, são até lindíssimas e os bichos comportam-se perante as câmaras com um profissionalismo e um empenho que a RTP não pode, em boa moral, exigir aos seus tarefeiros.

Há tempos, apanhei - infelizmente já a meio - um filme sobre o cavaco e o risco da sua possível desaparição. Interessei-me naturalmente pelo tema (que não pode deixar nenhum português indiferente) e tratei de o ponderar um pouco mais. Este texto reflecte, no que tem de monográfico, como no que comporta de prece e apelo, o carinho, o cuidado e o susto de um cidadão que se quer brioso.

Por tosca que seja a sua aparência e pese embora ao mito do berço humilde, o cavaco é oriundo de muito boas famílias. Ele é um Scyllarides Latus (Latreille). E embora eu esteja pouco informado da nomenclatura científica das espécies, creio que neste caso basta alguma sensibilidade fonética para que o ressaibo aristocrático salte à vista. Aliás, segundo as fichas da FAO que consultei, os malteses têm a delicadeza de lhe chamar Ckala Sewda e os tunisinos Ziz-el-Bahr. Nem um Hohenzollern é assim tratado.

Bem vistas as coisas, o caso não é para espanto de maior, que o mesmo sucede entre nós com os Silvas, por exemplo. Pululam por aí, invadiram a lista telefónica e reproduzem-se como coelhos. Mas a sua origem perde-se no melhor patriciado romano. O aristocrático general que Roma enviou para cercar e arrasar Masada foi precisamente Flavius Silva.

No entanto, tempus fugit. E Darwin mandou que as espécies evoluíssem do seu habitat. E eu não sei que ciladas e torpezas a mãe natureza reservou ao cavaco para o obrigar a chegar aos nossos dias com uma morfologia tão desencorajante.

O cavaco é um crustáceo, corrente mas indevidamente confundido com o cavaquinho (Scyllarus arcus). Mas o cavaco atinge em média os 45 centímetros (o que, transposto para escala humana, andará aí por 1,78 metros) e, segundo a monografia que lhe dedicou Helen Rost Martins (separata do ]ournal of Crustacean Biology, vol. 5, "nº 2, Maio de 1985), o exemplar mais pujante jamais apanhado pesava pouco mais de quilo e meio (o que, na transposição de escalas crustáceo/homem sugere cerca de 75 quilos).

A verdadeira comparação que se pode fazer é, pois, com a lagosta e o lavagante. Só que o cavaco não tem o glamour da lagosta nem o arreganho marialva do lavagante. Às grandes antenas de qualquer dessas espécies, o cavaco contrapõe dois trambolhos arredondados que parecem coutos feitos em cirurgia de guerra. Carece também das imponentes pinças daquelas duas espécies. Tais características não podiam deixar de ter as suas consequências e o cavaco sente-se vulnerável e perseguido.

Não dispondo de segurança bastante, aloja-se e vive em concavidades rochosas e pequenas cavernas (e, como o homem sabe por experiência, a caverna não é um ambiente adequado à sofisticação do comportamento).

A carapaça é bastante rígida, o que mais lhe dificulta os movimentos do que o protege dos seus perseguidores. Avisa a FAO que está florestada de pêlos curtos, o que não me parece constituir um problema (ou, pelo menos, não é problema meu).

A cor é castanha, mas Lyons, numa comunicação de 1982 (cit. in H.R.M., ibidem) descobriu que há uma fugaz fase anterior em que é laranja.

A tese do programa da televisão a que me reporto era a de a espécie estar em perigo pela sua incapacidade de descer às profundezas adequadas e que outros crustáceos atingem. Essa inexorável superficialidade seria a sua perdição. Antes de mais, por sofrer um impacte superior da poluição das águas. Depois, pela acção de um predador específico: o mero. Um mero mero devora cavacos em série com invejável desenvoltura, desde que este ponha a cabecinha fora da gruta ou se passeie cá por fora com aqueles cinco pares de patas que não devem dar jeito nenhum para saltar barreiras. Enfim, pela pesca humana. Na Madeira, segundo Maul (H.R.M., ibidem), encontra-se extinto. (Quem diria?) Na costa nordeste de África, segundo Maigret (idem, mas não é esse) também. Em Cabo Verde subsiste, mas deixa-se apanhar por grosso em armadilhas submarinas, que cobardemente exploram a dificuldade do cavaco em entender a psicologia humana (sendo certo que a falta de antenas decentes o priva de agarrar o subtil e que a falta de pinças o impede de agarrar seja o que for). Nos Açores e nas Canárias o método predominante é o artesanal: o da pesca por mergulho. (Na esteira do que dizia De Gaulle sobre o poder político em França: não se conquista, apanha-se à mão.) H.R.M. (ibidem), sendo menos catastrofista quanto ao ritmo da extinção do cavaco, admite, contudo, que a versão dominante é a de que o número de exemplares em águas açorianas diminuiu drasti­camente nos últimos anos. (E eu assumo a responsabilidade científica de afirmar o mesmo relativamente às cidades e campos de Portugal, com base em observações pessoais empíricas, mas bastante sistemáticas.)

O principal trunfo para a sobrevivência da espécie deveria consistir na capacidade de reprodução do cavaco: a postura inicia-se no fim de Junho (informação útil para meros, predadores menores e ainda outros) e pode atingir os 350 mil ovos! Só que a esmagadora maioria dos ovos se perdem. Em Portugal, em 1987, registou-se um caso único de desova incomensuravelmente maior e hoje vemos a dimensão a que pequenos predadores e outros mal-intencionados a reduziram já.

Da eclosão feliz de um ovo emerge a «larva nauplosiana». Registo o facto incidentalmente, porque tenho inúmeros amigos pessoais nessa categoria e nem eles nem eu sabíamos que têm todo o direito a usar tal título nos seus cartões de visita.

Volvendo ao fundo da questão. O cavaco será tosco ou menos grácil e brioso. Custar-nos-á que não tenha nenhum sentido épico de destino, contentando-se com a duvidosa tentativa de autoperpetuação pela desova grossista. Mas é uma criatura de Deus, um animal do nosso mundo e está em vias de extinção. Os senhores deputados, que já salvaram o lince da Malcata e o lobo ibérico, não poderão fazer nada para salvar o cavaco?

Nuno Brederode Santos, Rumor Civil, Relógio d'Água, p. 219.

domingo, novembro 20, 2005

Maria Filomena Mónica


Eu nunca havia estado a sós, num espaço fechado, com um homem. Percebi que raiava o interdito quando, após carícias, ele começou a despir-se. Era a primeira vez que via um homem nu. As formas masculinas – as nádegas verticais, o peito com pêlos, as pernas secas – eram mais belas do que imaginara. Deitei-me no sofá, olhando o deus que, sobre mim, se reclinava. Se descobrira o sexo, ignorava as consequências. Ou, pelo menos, não queria pensar nelas. Foi com espanto que olhei o rosto atemorizado do Carlos, quando, algumas semanas depois, lhe comuniquei que «a história» não me aparecia, o que, sendo o meu corpo de uma regularidade impecável, poderia estar ligado a algo que convinha descobrir. Foi ele que me anunciou estar grávida. Eu havia, sem dúvida, pecado por pensamentos, palavras e obras, mas jamais imaginara que Deus cobrasse um preço tão elevado por uma única transgressão.

Maria Filomena Mónica, Bilhete de Identidade, Alêtheia Editores, 2005, p. 168.

domingo, novembro 13, 2005

Salinger


De repente, a caminho do átrio, veio-me outra vez ao pensamento a amiga Jane Gallagher. E é que não a tirava da ideia. Sentei-me na cadeira com ar de vomitado no átrio e pus-me a pensar nela e no Stradlater sentados na merda do carro do Ed Banky, e, embora tivesse quase a certeza de que o amigo Stradlater não a tinha comido – para mim a amiga Jane era um livro aberto -, a verdade é que não conseguia tirá-la da ideia. Para mim era um livro aberto. A sério. Quer dizer, além das damas, gostava imenso de desporto e, depois de a ter conhecido, jogámos ténis os dois a bem dizer todas as manhãs e golfe quase todas as tardes. Acabei por ter com ela bastante intimidade. Não quero dizer que fosse alguma coisa física ou assim - não era -, mas víamo-nos a cada momento. Nem sempre é preciso que seja uma coisa sexual para conhecer uma miúda.

A maneira como a conheci foi por causa do doberman pinscher dela que tinha a mania de vir aliviar-se no nosso relvado, e a minha mãe ficava bestialmente irritada com isso. Chamou a mãe da Jane e armou um grande escarcéu. A minha mãe é capaz de armar un grande escarcéu por coisas do género. E então acontece que daí a dias vi a Jane deitada de barriga para baixo junto à piscina, no clube, e disse-lhe olá. Sabia que ela vivia na casa ao lado da nossa, mas nunca tinha falado com ela ou assim. Mas nesse dia ela respondeu com grande frieza ao meu olá. Tive uma trabalheira do caneco para a convencer de que me estava completamente nas tintas para saber onde o cão dela fazia as necessidades. Por mim, podia até fazê-las na sala de estar. Mas enfim, depois disso, a Jane e eu ficámos amigos e tudo. Joguei golfe com ela nessa mesma tarde. Ela perdeu oito bolas, ainda me lembro. Oito. Levei um tempão do caneco a convencê-la pelo menos a abrir os olhos quando dava uma tacada na bola. Mas ajudei-a imenso a melhorar o jogo dela. Sou bastante bom no golfe. Se lhes dissesse em quantas tacadas faço o campo, se calhar não acreditavam. Uma vez estive para entrar num documentário, mas mudei de ideia no úl­timo momento. Lembrei-me de que alguém que odeia tanto o cinema como eu, só se fosse um camelo é que deixava que me pusessem num documentário.

Era uma miúda engraçada, a Jane. Não vou dizer que seja propriamente uma beleza. Mas deixava-me banzado. Era género multi­-bocas. Quer dizer, quando falava e se entusiasmava com alguma coisa, era como se a boca dela se mexesse em cinquenta direcções, lábios e tudo. Ficava banzado. E realmente nunca a fechava completamente, a boca. Tinha-a sempre um bocadinho aberta, especialmente quando se punha em posição no golfe, ou quando estava a ler algum livro. Esta­va sempre a ler, e lia livros muito bons. Lia uma data de poesia e tudo. Fora da minha família, foi ela a única pessoa a quem mostrei a luva de basebol do Allie, com os poemas todos que tinha escritos e tudo. Ela não tinha conhecido o Allie nem nada, porque era o primeiro Verão que passava no Maine - antes disso ia para Cape Cod -, mas eu contei-lhe muita coisa sobre ele. Era o tipo de coisas que a inte­ressavam.

A minha mãe não gostava muito dela. Quer dizer, a minha mãe sempre achou que a Jane e a mãe dela estavam a dar-se ares com ela ou coisa assim quando não a cumprimentavam na rua. A minha mãe via-as imenso na aldeia, porque a Jane costumava ir com a mãe ao mercado naquele LaSalle descapotável que eles tinham. A minha mãe nem sequer achava que a Jane fosse bonita. Mas eu achava. Tinha um ar que me agradava, é isso.

Ainda me lembro daquela tarde. Foi a única vez em que eu e a Jane estivemos a ponto de nos pormos na marmelada. Era um sábado e chovia a potes, e eu estava em casa dela, no alpendre – tínhamos daqueles grandes alpendres fechados. Estávamos a jogar às damas. De vez em quando, punha-me no gozo por ela nunca mexer as damas da última fila. Mas não gozava de mais. Não dava muita vontade de abusar a gozar a Jane. Para dizer a verdade, acho que gramo mais gozar à brava uma miúda quando tenho uma ocasião, mas é uma coisa esquisita. As miúdas de quem mais gosto são as que não me dá muito para gozar com elas. Às vezes parece-me que gostavam que gozasse com elas - ou antes, sei que gostavam -, mas é difícil começar, quando as conhecemos há uma data de tempo e nunca gozámos com elas. Mas enfim, estava a contar-lhes aquela tarde em que eu e a Jane estivemos a ponto de fazer marmelada. Estava a chover como o caraças e nós estávamos no alpendre, e às tantas o tipo que se tinha casado com a mãe dela, o tal que se metia nos copos, veio ao alpendre e perguntou à Jane se havia cigarros em casa. Eu não o conhecia bem nem nada, mas parecia-me o tipo de gajo incapaz de falar com uma pessoa a não ser que quisesse sacar-lhe alguma coisa. Tinha um feitio lixado. Mas enfim, a amiga Jane não respondeu nada quando ele lhe perguntou se ela sabia se havia cigarros. Então, o gajo voltou a perguntar, mas ela continuou sem responder. Nem sequer levantou os olhos do jogo. O gajo acabou por voltar para dentro de casa. Quando ele saiu, perguntei à Jane que raio se passava. Mas ela nem sequer respondeu nem a mim. Fez que se concentrava na jogada que ia fazer e assim. Então, de repente veio aquela lágrima que caiu no tabuleiro. Num dos quadrados vermelhos - eh pá, ainda a estou a ver. Ela limpou-a com o dedo. Não sei porquê, mas aquilo mexeu bestialmente comigo. E o que eu fiz foi aproximar-me e fi-la afastar-se no banco de baloiço para me poder sentar ao lado dela - a bem dizer fiquei sentado nos joelhos dela, para dizer a verdade. E então ela começou mesmo a chorar, e eu dei por mim a beijá-la por toda a parte - nos olhos, no nariz, na testa, nas sobrancelhas, nas orelhas -, na cara toda, tirando a boca e assim. Na boca, ela não queria. Mas enfim, foi dessa vez que estivemos mais perto de fazer marmelada. Passados uns instantes, ela levantou-se, entrou em casa e vestiu aquela camisola vermelha e bran­ca que ela tinha, que me deixava sem fala, e fomos ver a merda de um filme. Pelo caminho, perguntei-lhe se o Sr. Cudahy - era como se chamava o gajo dos copos - alguma vez se tinha atirado a ela. Era ainda bestialmente nova, mas tinha uma figura fantástica, e não me admirava nada que aquele sacana do Cudahy tentasse. Nunca vim a saber que raio se passou. Há miúdas com quem nunca sabemos o que é que se passou.

Não quero que fiquem com a ideia de que ela era alguma pedra de gelo ou coisa assim, lá porque nunca fizemos amor nem estivemos na marmelada. Não era. Passava o tempo de mãos dadas com ela, por exemplo. Não parece grande coisa, bem sei, mas é que ela era bestial a andar de mãos dadas. A maior parte das miúdas se lhes damos a mão, a merda da mão delas ou morre na nossa ou então acham que têm que estar sempre a mexer a mão ou coisa assim. Com a Jane era diferente. Íamos à merda de um filme ou assim, e dávamos logo as mãos e não largávamos até o filme acabar. E sem mudar de posição e sem fazer disso uma grande coisa. Com a Jane, nem sequer me cha­teava a pensar se tinha as mãos suadas ou não. A única coisa que sabia é que era feliz. E era mesmo.

Pensei agora noutra coisa. Uma vez, durante um filme, a Jane fez uma coisa que me deixou banzado. Estavam a dar as actualidades ou coisa do género, e às tantas senti uma mão na nuca, e era a da Jane. Era uma coisa esquisita. Quer dizer, ela era muito nova e tudo, e a maior parte das miúdas que vemos a pôr a mão na nuca de alguém têm à volta de vinte e cinco anos ou trinta e normalmente fazem isso ao marido ou ao filho pequeno - eu faço isso à minha irmãzinha Phoebe uma vez por outra, por exemplo. Mas se uma miúda é bas­tante nova e tal e faz isso, é uma coisa tão gira que quase nos deixa sem fala.

Mas enfim, era nisso que estava a pensar quando me sentei na­quela cadeira com ar de vomitado no átrio do hotel. Na amiga Jane. De cada vez que chegava àquela parte com ela e o Stradlater no raio daquele carro do Ed Banky, ficava quase maluco. Sabia que ela não o deixava chegar à grande área, mas ficava maluco na mesma. Nem sequer quer gosto de falar nisso, se querem saber a verdade.

A bem dizer, já não estava ninguém no átrio. Mesmo as loiras com ar de putas já lá não estavam, e de repente veio-me uma enorme vontade de me pôr a milhas. Era demasiado deprimente. E eu não me sentia cansado nem nada. Por isso subi ao quarto e vesti o sobretudo. Dei também uma vista de olhos pela janela a ver se todos aqueles tarados ainda estavam em acção, mas agora as luzes estavam apagadas e tudo. Voltei a descer no elevador, apanhei um táxi e disse ao motorista para me levar ao Ernie's. O Ernie's era um night club em Greenwich Village que o meu irmão D.B. costumava frequentar antes de se ir prostituir para Hollywood. Costumava levar-me com ele uma vez ou outra. O Ernie é um tipo gordo enorme de cor que toca piano. É um snobe tramado e nem sequer fala com as pessoas, a não ser que se trate de algum manda-chuva ou alguém famoso ou coisa assim, mas realmente sabe tocar piano. É tão bom que é quase piroso, de facto. Não sei bem o que quero dizer com isto, mas é isso que quero dizer. É certo que gosto de o ouvir tocar, mas às vezes dá-me vontade como que de lhe virar o piano de pernas para o ar. Acho que é porque às vezes quando ele toca, sentimos que é o tipo de gajo que só fala connosco se formos algum manda-chuva.

J.D.Salinger, À Espera no Centeio, Difel, 2005, p. 88.

quinta-feira, novembro 10, 2005

Walser



BASTA !

Vim ao mundo a tantos de tal, fui educado em tal sítio, fui para a escola como qualquer um, sou isto e aquilo, chamo-me fulano de tal e não penso muito. Do ponto de vista do género sou do sexo masculino, do ponto de vista do estado sou um bom cidadão e do ponto de vista social pertenço à melhor sociedade. Sou um membro impecável, pacato e amável da sociedade humana, um dos chamados bons cidadãos, gosto de beber o meu copo de cerveja sobriamente, e não penso muito. Assim, não é de espantar que de preferência coma bem e também não é de espantar que as ideias não se aproximem de mim. O pensamento arguto é-me com­pletamente alheio. As ideias ficam sempre muito longe de mim e por isso sou um bom cidadão, já que um bom cidadão não pensa muito. Um bom cidadão come o que tem a comer e isso basta!

Não esforço particularmente a cabeça, deixo isso às outras pessoas. Quem esforça a cabeça torna-se odiado. Quem pensa muito tem fama de ser incómodo. Já Júlio César apontava o dedo grosso ao Cássio, esquelético e de olhos encovados, a quem temia porque suspeitava que ele tinha ideias na cabeça. Um bom cidadão não pode inspirar medo e suspeita. Pensar muito não é o seu ofício. Quem pensa muito torna-se mal amado e é inteiramente desnecessário ser mal amado. Ressonar e dormir é melhor ser poeta ou pensar. Vim ao mundo a tantos de tal, fui à escola em tal sítio, leio ocasionalmente o jornal, tenho a profissão tal e tal, tenho tantos e tantos anos, pareço ser um bom cidadão e gostar de comer bem. Não esforço especialmente a cabeça, já que deixo isso às outras pessoas. Matar a cabeça a pensar não é o meu forte, pois quem pensa muito padece de dores de cabeça e a dor de cabeça é inteiramente supérflua. Dormir e ressonar é melhor do que matar a cabeça e beber um copo de cerveja sobriamente é de longe melhor do que ser poeta e pensar. As ideias ficam sempre longe de mim e não desejo, em circunstância alguma, matar a cabeça, deixo isso aos homens que dirigem o estado. Por isso sou justamente um bom cidadão, para viver em paz, para não precisar de esforçar a cabeça, para que as ideias fiquem longe de mim e para que possa morrer de medo de ter que pensar muito. Tenho receio do pensamento arguto. Sempre que penso com argúcia, fica tudo azul e verde diante dos meus olhos. Prefiro beber um bom copo de cerveja e deixar qualquer pensamento arguto para os dirigentes do estado. Os políticos podem, pois, pensar com quanta argúcia quiserem, até a cabeça lhes estoirar. Diante dos meus olhos fica sempre tudo azul e verde quando puxo pela cabeça, o que não é bom, por isso a esforço o menos possível e me mantenho completamente acéfalo e sem ideias. Quando apenas os políticos pensam até tudo lhes ficar azul e verde diante dos olhos e a cabeça lhes saltar, tudo está em ordem, e nós, os da nossa espécie, podemos beber em paz o nosso copo de cerveja, sobriamente, de preferência comer bem e à noite dormir tranquilamente e ressonar, admitindo que ressonar e dormir seja melhor do que dar cabo da cabeça e do que ser poeta e pensar. Quem esforça a cabeça apenas se torna mal amado e quem apregoa intenções e opiniões fica com fama de ser uma pessoa incómoda, ao passo que um bom cidadão não deve ser incómodo, mas antes uma pessoa amável. É por isso que eu deixo aos homens políticos, tranquilamente, o pensamento arguto que dá cabo da cabeça, pois nós, os da nossa espécie, não passamos de membros sólidos mas insignificantes da sociedade humana, dos chamados bons cidadãos ou filisteus, que gostam de beber sobriamente o seu copo de cerveja e de comer um bom e belo prato de comida bem suculenta, e isso basta!

Os homens políticos devem pensar até confessarem que tudo ficou verde e azul diante dos seus olhos e que têm dores de cabeça. Um bom cidadão nunca deve ter dores de cabeça, pelo contrário, o seu belo copo deve sempre saber-lhe bem, na mais saudável sobriedade, e à noite deve dormir tranquilamente e ressonar. Chamo-me fulano de tal, vim ao mundo a tantos de tal e fui manda­do para a escola como toda a gente, em cumprimento do dever, em tal e tal sítio, sou isto e aquilo de profissão, tenho tantos e tantos anos e dispenso pensar muito e esforçadamente, porque deixo com prazer o esforço mental e as avassaladoras dores de cabeça às cabeças daqueles que dirigem e decidem e que se sentem res­ponsáveis. Nós, os da nossa espécie, não sentimos nenhum tipo de responsabilidade, já que a nossa espécie bebe sobriamente o seu copo e não pensa muito, pois deixa esse deleite muito especial para as cabeças que têm a responsabilidade. Fui à escola em tal e tal sítio, onde fui obrigado a esforçar a cabeça, a qual, desde então, não voltei a esforçar regularmente nem a ocupar por muito tempo. Nasci a tantos de tal, chamo-me fulano de tal, não tenho responsabilidade nenhuma e não sou, de forma alguma, o único. Felizmente há muitos, mesmo muitos, que, como eu, saboreiam sobriamente o seu copo de cerveja, que, tal como eu, pensam pouco e não gostam de matar a cabeça, que preferem alegremente deixar isso para outras pessoas, por exemplo, para os políticos. O pensamento arguto é-me a mim, tranquilo membro da sociedade humana, completamente estranho e, felizmente, não apenas a mim, mas a legiões de outros que, como eu, preferem comer bem e não pensar muito, têm tantos e tantos anos, foram educados em tal e tal sítio, são membros impecáveis da sociedade, como eu, são bons cidadãos, como eu, e para os quais o pensamento arguto é tão estranho como para mim, e isso basta!

Robert Walser, O Passeio e Outras Histórias, Granito Editores e Livreiros, 2001, pag. 99.

domingo, novembro 06, 2005

Yourcenar


"Devo confessar que acredito pouco nas leis. Demasiado duras, são transgredidas com razão. Demasiado complicadas, o engenho humano encontra facilmente maneira de se escapar por entre as malhas dessa massa monótona e frágil. O respeito pelas leis antigas corresponde ao que tem de mais pro­fundo a piedade humana; serve também de almofada à inércia dos juizes. As mais velhas participam daquela selvajaria que se empenhavam em corrigir; as mais venerá­veis são ainda um produto da força. A maior parte das nos­sas leis penais só atinge, talvez felizmente, uma pequena parte dos culpados; as nossas leis civis nunca serão bastante maleáveis para se adaptar à imensa e fluida variedade dos factos. Mudam menos rapidamente que os costumes; peri­gosas quando eles as ultrapassam, são-no ainda mais quando pretendem precedê-los. E contudo, deste amontoado de inovações que oferecem tantos riscos ou de rotinas envelhecidas emergem, aqui e ali, como na medicina, algumas fórmulas úteis. Os filósofos gregos ensinaram-nos a conhe­cer um pouco melhor a natureza humana. Há já algumas gerações que os nossos juristas trabalham na direcção do senso comum. Eu próprio realizei algumas dessas reformas parciais que são as únicas duradouras. Toda a lei muitas vezes transgredida é má: compete ao legislador revogá-Ia ou substituí-Ia, para que o desprezo em que essa louca deter­minação caiu se não estenda a outras leis mais justas. O fim que eu me propunha era uma prudente abolição de leis supérfluas, um pequeno grupo de sábias decisões firmemente promulgadas. Parecia ter chegado o momento de, no inte­resse da humanidade, revalorizar todas as prescrições antigas.

Em Espanha, num dia em que eu visitava sozinho uma exploração mineira nos arredores de Tarragona, um escravo, cuja vida se passara quase inteiramente naqueles corredo­res subterrâneos, atirou-se a mim com uma faca. Não ilo­gicamente, vingava-se no imperador dos seus quarenta anos de servidão. Desarmei-o facilmente; entreguei-o ao meu médico; a sua fúria abrandou; transformou-se no que verdadeiramente era, um ser menos ajuizado que outros e mais fiel que muitos. Este delinquente que a lei rigorosamente aplicada teria mandado matar sem demora tornou-se para mim um útil servidor. A maior parte dos homens parece-se com este escravo: submeteram-se de mais; os seus longos períodos de embotamento são interrompidos por algumas revoltas tão brutais quanto inúteis. Eu queria ver se uma liberdade sensatamente compreendida não daria melhor resultado, e espanta-me que semelhante experiência não tenha tentado outros príncipes. Este bárbaro condenado ao trabalho das minas tornou-se para mim o símbolo de todos os nossos escravos, de todos os nossos bárbaros. Não me parecia impossível tratá-los como eu tinha tratado este homem, torná-los inofensivos à força de bondade. contanto que soubessem primeiro que a mão que os desarmava era firme. Até agora todos os povos decaíram por falta de generosidade: Esparta teria sobrevivido mais tempo se tivesse interessado os hilotas na sua sobrevivência; um belo dia Atlas deixa de suportar o peso do céu e a sua revolta faz estremecer a Terra. Teria querido afastar o mais possível, evitar se pudesse, o momento em que os bárbaros do exterior e os escravos do interior se lançarão sobre um mundo que lhe mandam respeitar de longe ou servir como inferiores, mas cujos benefícios não são para eles. Empenhava-me em que a mais deserdada das criaturas, o escravo que limpa as cIoacas da cidade, o bárbaro esfomeado que ronda as fronteiras tivessem empe­nho em que Roma durasse.

Duvido de que toda a filosofia do mundo consiga su­primir a escravatura: o mais que poderá suceder é muda­rem-lhe o nome. Sou capaz de imaginar formas de servidão piores que as nossas, por serem mais insidiosas: seja que consigam transformar os homens em máquinas estúpidas, e satisfeitas, que se julgam livres quando estão subjugados seja que desenvolvam neles, com exclusão dos repousos e prazeres humanos, um gosto pelo trabalho tão arrebatado como a paixão da guerra entre as raças bárbaras. Prefiro ainda a nossa escravidão de facto a esta servidão do espírito ou da imaginação. Seja como for, o horrível estado que põe o homem à mercê de um outro homem precisa de ser cuidadosamente regulado pela lei. Estive atento a que o escravo não continuasse a ser aquela mercadoria anónima que se vende sem ter em conta os laços de família que ele haja criado, esse objecto desprezível de que um juiz não regista o testemunho senão depois de o ter submetido à tortura, em vez de o aceitar sob juramento. Proibi que o obrigassem às profissões degradantes ou perigosas, que o vendessem aos donos de casas de prostituição ou às escolas de gladiadores. Que aqueles que gostam dessas profissões sejam os únicos a exercê-Ias: serão assim mais bem desempenhadas.

(...)

Uma parte dos nossos males provém de haver demasia­dos homens excessivamente ricos ou desesperadamente po­bres. Por felicidade, no nosso tempo, tende-se a estabelecer um equilíbrio entre estes dois extremos: as fortunas colos­sais dos imperadores e dos libertos pertencem ao passado: Trimalcião e Nero morreram. Mas pelo que respeita a um inteligente reajustamento económico do mundo, tudo está por fazer. Ao chegar ao poder renunciei às contribuições voluntárias das cidades para o imperador, que não são mais que um roubo disfarçado. Aconselho-te a, por tua vez, renunciares também a elas. A anulação completa das dívidas dos particulares ao Estado era uma medida mais arriscada, mas necessária para fazer tábua rasa depois de dez anos de economia de guerra. A nossa moeda tem-se desvalorizado perigosamente de há um século para cá: é todavia pela taxa das nossas moedas de ouro que se avalia a eternidade de Roma: compete-nos restituir-lhes o seu valor e o seu peso solidamente medidos em coisas. As nossas terras são apenas cultivadas ao acaso: só distritos privilegiados, o Egipto, a África, a Toscana e alguns outros, souberam criar comu­nidades camponesas sabiamente exercitadas na cultura do trigo ou da vinha. Um .dos meus cuidados era amparar esta classe, tirar dela instrutores para populações aldeãs mais primitivas ou mais rotineiras, menos hábeis. Pus termo ao escândalo das terras deixadas em alqueive por grandes proprietários pouco cuidadosos do bem público: todo o campo não cultivado há cinco anos passou a pertencer desde então ao cultivador que se encarrega de o fazer produzir. Sucedeu pouco mais ou menos o mesmo com as explora­ções mineiras. A maior parte dos nossos ricos faz enormes donativos ao Estado, às instituições públicas, ao príncipe. Muitos agem assim por interesse, alguns por virtude; quase todos ganham com isso. Mas eu teria querido ver a sua generosidade tomar outras formas que não fossem a da ostentação na esmola, ensinar-lhes a aumentar sensata­mente os seus bens no interesse da comunidade, como só têm feito, até aqui, para enriquecer os seus filhos. Foi nesse espírito que eu próprio tomei nas minhas mãos a administração do domínio imperial: ninguém tem o direito de tratar a terra como o avaro o seu pote de ouro."

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, Ulisseia (2ª ed., 1983), p. 99.