sábado, outubro 29, 2005

Cernuda


Que ruído tão triste

Que ruído tão triste fazem dois corpos quando se amam,

parece o vento que se move no outono

sobre adolescentes mutilados,
enquanto as mãos chovem,
mãos ligeiras, mãos egoístas, mãos obscenas,
cataratas de mãos que foram um dia

flores no jardim de uma algibeira tão pequena.

As flores são areia e as crianças são folhas,
e o seu leve ruído é amável ao ouvido
quando riem, quando amam, quando beijam,

quando beijam o fundo
de um homem jovem e cansado

porque dantes sonhou de dia e de noite.


Mas as crianças não sabem,
nem tão-pouco as mãos chovem como dizem;

assim o homem, cansado de estar sozinho com seus sonhos,
invoca as algibeiras que abandonam areia,
areia das flores,
para que um dia decorem a sua face de morto.

(Los placeres prohibidos)

Luis Cernuda, 20 Poetas Espanhóis do Século XX, Alma Azul, 2003, (tradução de Ruy Ventura), p. 95.

sexta-feira, outubro 28, 2005

Nuvens

Assis Pacheco



BRENDA. De Bâton Rouge.

Inscrita na agenda em Baltimore, Maryland, a meia centena de metros da igreja de Westmins­ter, ao pé de onde está sepultado Edgar Allan Poe.

Brenda romântica:

«Porra, mais uma seca no bar e não me estreava hoje!»

Brenda de cabelo ruivo, ruivo pouco natural, atentas as tintas. O indicador direito castanho dos cigar­rómetros. Mamas caídas, que se adivinhavam e eu de­pois tive tempo de analisar com a paixão do entomologista. Quarentas bem medidos, ou como ela meta­forizou no minuto do chuveiro:

«Desculpa lá, pareço uma cafeteira toda rota.»

«Pareces nada.»

«Pareço. Precisava de dez pingos de solda para não dar barraca. Olha, deixa andar.»

Brenda ainda na fase da pré-asfixia pulmonar, à barra, para o artolas de mim:

«Pagas um bourbon?»

«Pago se a seguir a esse beberes outro.»

«Bonzinho!»

«É conforme.»

«Conforme a xandra, queres tu explicar.»

«Conforme a xandra, acertaste.»

«Lá gentil és.»

«Se sou.»

Brenda deita contas à vida, sagaz, tipo psicanalista da Escola Steker:

«Cinquentas. Não há descontos.»

«Vai bebendo o copo que já falamos.»

Agora dou-lhe que matutar. Pois se há cinco minu­tos a engatei com todos os matadores, beijinho na orelha, mãozorra no casqueiro, cheio de olés, e não pego na bisca! O seu latim estará condenado a perder-se? Não está, sou realmente bonzinho.

«Xandras de cinquentas não me interessam. Dou cens. Pago adiantado», digo e lanço o mindinho à carteira.

Brenda não cabe em si: de pasmo, de hipocrisia sulista, de chewing-gum na boca. Saliva abundante­mente quando vê os cens. Deve recordar-se de uns lampejos felizes na adolescência, a escola dominical, o piquenique do liceu, e jura que chora, mas eu ponho­-me a pau e estipulo condições:

«Se choras baixo para os trinta.»

Pronto, não chorou, exigindo de permeio um par luvas de pelica, comprei as luvas, um romance de sexo e tiros, comprei o romance, e morria por um hamster coitadinho na montra duma loja de bichos, o hamster não comprei porque cheirava mal e eu de­testo essências exóticas.

O motel tinha uma tabuleta a dizer Voyage. Era como Brenda, pagava-se adiantado. O tipo da recepção acumulava com barman, e foi questionando sobre as nossas referências líquidas:

«Um manhattan? Para a senhora um bloody Mary? Não? Bourbon para o casal?»

Descansei-o:

«Bebemos água da companhia.»

Fingiu que gostara da graça e deu-me a chave do cortiço com uma toalha, um toalhete e um sabonete minúsculo de propaganda aos Orioles campeões de ba­seball.

Já no quarto Brenda, a xandra, bocejou:

«Apetecia-me era chonar.»

«Depois do xeque ao bispo», especifiquei para não comido.

«OK, OK», disse Brenda engolindo o bocejo. Mostra lá à menina esse furta-cores.»

Daí a minutos, despachado dos cens, procurei averiguar se Brenda fazia um saldo jeitoso para a segunda travessia no arame, e foi a vez de ela dominar o jogo com esta filosófica tirada:

«Vocês, pobrezinhos, sei lá quando voltam a pinocar. É o que tu quiseres, que eu gosto mais disto do que gosto de chili.»

Gostava sem reticências. Quando comparo a Ar­lete à Brenda não posso deixar de lamentar a inclina­ção, e a perseverança, do Mac. Quarentas à base de ginástica sueca, se me permitem o circunlóquio! O Poe é que sabia!

Brenda tomou duas chuveiradas, palmou o que era de palmar, cinzeiro, guardanapos de papel, Bíblia Gi­deon (que lhe repalmei), frasco de after-shave, res­guardo «higienizado» da retrete, vestiu-se demorada­mente, folheou o livro que eu andava na altura a ler, um Bukowski, às dez e meia da manhã (do dia seguinte, dólares bem gastos!) fez bye-bye e pespegou-me um baby no entredentes.

«Sempre vais para o Vietnam?», perguntou sem grande crença na minha história da véspera.

«Sempre», cuspi de mistura com o pastoso baby da cena anterior.

«E vais ganhar o céu, estou a ver», disse ela.

Enrolei-me no cobertor:

«Os anjinhos de Saigão têm os olhos em fenda.»

«Devem ter, devem!», abanou ela a cabeça. «Olha mas é os escarépios, não venhas contar que fui eu. Limpinha como o Santo Sepulcro!»

E ergueu dois dedos no sinal dos escuteiros.

Fernando Assis Pacheco, Walt, Livraria Bertrand, 1979, p. 45.

sexta-feira, outubro 14, 2005

Sena


Num ímpeto brusco, que o despegou do corpo dela, rolou e parou deitado ao lado, com a mão esquerda esten­dida por cima dos cabelos soltos dela, que roçava, e a mão direita pousada entre os dois seios, sentindo, menos que o coração batendo, a tremura ténue que a ficara percorrendo. De olhos fechados, ela trouxe as mãos sobre a dele, segu­rando-a, sem força, contra o peito. Então, a mão, sob as outras, deslizou um pouco e, entre o polegar e os dedos estendidos, tomou a curva da inserção do seio, que, com um jeito oscilante do pulso, ia contornando cariciosamente. As mãos dela apertaram a sua, e ela, descaindo a cabeça, fitou-o.

Olhou-o docemente, num olhar húmido e quebrado em que as feições dele evoluíam incertas, ao sabor das sombras e do encantamento que ainda perdurava nela, e tomando aspectos diversos, ora confundidos, ora sucessivos, em que havia traços dos retratos dele em criança e em adolescente, quando o não conhecera, e recordações de ângulos em que surpreendera a cabeça dele e lhe haviam ficado pela sobressaliência, que destacara então, de um pormenor qualquer, uma comissura dos lábios, um recanto de pálpebra, uma nódoa da barba, um delicado contorno da orelha.

(...)

A mão, espalmando-se no peito, esfregou os pêlos ao arrepio deles, que não eram crespos, mas, salvo num ou noutro redemoinho, dirigidos no sentido do ventre, a cujo umbigo pareciam apontar. Senti-los assim correr na sua palma revirados, e poder repô-los depois com repetida carícia, era uma forma de exorcismo, uma maneira de afugentar a apreensão que a pele dele, atraindo-a, lhe causava. Foi descendo depois com a mão, prolongando pelo tronco abaixo as carícias com que repunha os pêlos. Numa aspiração entre­cortada e dupla, como um indistinto soluço, ele suspirou.

Então, a mão ficou retida no umbigo. E os olhos pers­crutaram o rosto dele, que continuava imóvel, pálpebras cerradas, sobrancelhas soerguidas, boca ligeiramente entrea­berta. Só o nariz parecia palpitar. A mão levantou-se e pairou hesitante: pousaria quieta, afagaria um pouco, regressaria, avançaria, ou retirar-se-ia?

Embora conhecesse por experiência as reacções que a tudo, diversas, ele poderia ter, não sabia, na solidão que começava a invadi-la, qual das reacções preferia, para estilha­çar-lhe o vidro que se interporia nela, entre o ardor sequioso, latejando no pescoço e no ventre, e a coragem de provocar um gesto decisivo que poderia ofendê-la, ou humilhá-la, ou magoá-la mesmo, ou dominá-la apenas.

A mão pousou, porque ela sentiu que não desejava nada; e, porque, repentinamente, uma imensa tranquilidade grata era o que latejava afinal em compassado ardor, a mão foi avançando e penetrou os dedos na massa crespa em que o enleou. O cotovelo afrouxou, dormente, no que o corpo se apoiava. E a cabeça, descaindo para a frente, pousou suavemente, acomodando-se, no peito dele.

Entre ambos ficou o braço dele, que ela sentiu esgueirar-se e envolvê-la depois, sem a tocar, de que ficou esperando, contraída e desagradada, que ele fizesse o que fez, percorrer-lhe com as pontas dos dedos a espinha até às ancas, onde a mão se espalmou, aberta, para apertar-lhe logo com força a carne. Então a mão dela avançou mais, roçou com as costas ao longo do sexo, que deu um lento salto, mergulhou nas virilhas, e demorou-se sentindo, nas costas, os movimentos interiores, ora lentos, ora súbitos, dos testículos.

Repentinamente, a mão que, apertada a carne das ancas, ficara pousada e como lá esquecida, levantou-se e, agarrando-a no pescoço, por detrás, fê-la levantar-se e cair deitada, enquanto o tronco e o outro braço vinham sobre ela, e os dentes a mordiam no lábio inferior com uma violência que tentou repelir. Mas logo a sua própria língua lhe embateu nos dentes, que descerrou para que ela viesse encostar-se à outra que, abrindo-lhe os lábios, a buscava.

Jorge de Sena, excerto do conto "Os Amantes" inserto na antologia Antigas e Novas Andanças do Demónio, Edições 70, 1981, p. 201.