quarta-feira, dezembro 26, 2007

quinta-feira, novembro 22, 2007

Cormac McCarthy (2)


Já próximo da alvorada, avistaram fogueiras no horizonte. Glanton mandou os Delawares reconhecer o terreno. A estrela de alva já chamejava a oriente com um brilho pálido. Quando re­gressaram, os índios acocoraram-se em círculo com Glanton e o juiz e os irmãos Brown e falaram e gesticularam e em seguida to­dos tomaram a montar e todos prosseguiram.

Cinco carroções ardiam em fogo lento no solo do deserto e os cavaleiros desmontaram e caminharam em silêncio por entre os corpos dos argonautas mortos, aqueles honrados peregrinos sem nome caídos no meio das pedras com as suas horríveis feridas, as vísceras a brotarem-lhes dos flancos e os torsos nus eriçados de flechas. Alguns, a avaliar pelas barbas, eram homens, mas ainda assim exibiam estranhos ferimentos menstruais entre as pernas e não se lhes viam as partes pudendas masculinas porque tinham sido cortadas e pendiam-lhes, sombrias e estranhas, das bocas sorridentes. Com as suas perucas de sangue seco jaziam a perscrutar as alturas com olhos de macacos, contemplando o irmão Sol que agora se erguia a oriente.

Os carroções não passavam já de brasas emolduradas pelas formas enegrecidas dos ferros da cobertura e dos aros das rodas, com os eixos ao rubro a pulsar no âmago dos carvões chamejantes. Os cavaleiros agacharam-se diante dos fogos e ferveram água e beberam café e assaram carne e deitaram-se para dormir no meio dos mortos.

Quando o bando se pôs de novo em marcha ao anoitecer, prosseguiu para sul como antes. Os rastos dos assassinos dirigiam-se para oeste, mas eram homens brancos que atacavam os viajantes naquelas paragens agrestes e disfarçavam os seus feitos de modo a que parecessem obra dos selvagens. Os conceitos de acaso e destino preocupam os homens envolvidos em empresas temerárias. O trilho dos argonautas terminava num amontoado de cinzas, tal como se acaba de relatar, e o ex-padre indagou se na convergência destes vectores naquele lugar desolado onde o ânimo e a iniciativa de uma pequena nação foram aniquilados e engolidos por outra não seria visível a mão de um deus cínico a orquestrar com toda a severidade e um simulacro de surpresa uma tão fatal congruência. A colocação de testemunhas por uma terceira via totalmente diversa poderia também invocar-se como prova, dado que parece ser tudo menos obra do acaso, porém o juiz, que es­picaçara o cavalo até ficar a par dos homens que assim discu­tiam, declarou que nisto se exprimia a verdadeira natureza da tes­temunha e que a sua proximidade não era uma instância acrescida mas sim a primordial, pois a salvo dos olhares huma­nos alguma coisa acontecerá?

Cormac McCarthy, Meridiano de Sangue, p. 188, Relógio D'Água (tradução de Paulo Faria)


domingo, outubro 28, 2007

quarta-feira, setembro 05, 2007

Vila-Matas



Hoje é 17 de Julho, são duas da tarde, oiço música de Chet Baker, o meu intérprete preferido. Há pouco, enquanto me barbeava, olhei-me ao espelho e não me reconheci. A radi­cal solidão destes últimos dias está a transformar-me num ser diferente. Seja como for, sinto-me bem com a minha anoma­lia, o meu afastamento, a minha monstruosidade de indivíduo isolado. Encontro certo prazer em ser arisco, em burlar a vida, em adoptar posturas de herói radical e negativo da literatura (isto é, em ser como os protagonistas destas notas sem texto), em observar a vida e ver que, coitada, não tem vida própria.

Olhei-me ao espelho e não me reconheci. Depois, pen­sei naquilo que dizia Baudelaire: que o verdadeiro herói é o que se diverte sozinho. Voltei a olhar-me ao espelho e detec­tei em mim algumas parecenças a Watt, aquele solitário per­sonagem de Samuel Beckett. Tal como Watt, eu poderia ser descrito da seguinte forma: um autocarro pára à frente de três velhos repugnantes que o observam sentados num banco público. O autocarro arranca. «Olha (diz um deles), deixa­ram um monte de trapos.» «Não (diz o segundo), é um balde de lixo.» «Não, (diz o terceiro), é um maço de jornais velhos que alguém atirou para ali.» Nesse momento o monte de restos avança para eles e pede para se sentar no banco com enorme grosseria. É Watt.

Não sei se fica bem escrever transformado num monte de restos. Não sei. Tenho muitas dúvidas. Talvez devesse acabar com o meu excessivo isolamento. Falar pelo menos com Juan, telefonar para sua casa e pedir-lhe que me volte a repetir aquilo de que não há nada depois de Musil. Tenho muitas dúvidas. A única certeza que agora tenho é que devo mudar de nome e passar a chamar-me CasiWatt. Mas não sei se tem muita importância dizer isto ou outra coisa. Dizer é inventar. Seja certo ou falso. Não inventamos nada, julgamos inventar quando de facto nos limitamos a balbu­ciar a lição, os restos de uns deveres escolares aprendidos e esquecidos, a vida sem lágrimas, tal como a choramos. E à merda.

Sou apenas uma voz escrita, sem vida privada nem pú­blica, sou uma voz que atira palavras que de fragmento em fragmento vão enunciando a longa história da sombra de Bartleby sobre as literaturas contemporâneas. Sou CasiWatt, sou mero fluxo discursivo. Nunca despertei paixões, e não vou despertá-las agora que já sou apenas uma voz. Sou Casi­Watt. Deixo-as dizer, às minhas palavras, que já não são mi­nhas, eu, essa palavra, essa palavra que elas dizem, mas que dizem em vão. Sou CasiWatt e na minha vida só houve três coisas: a impossibilidade de escrever, a possibilidade de o fazer, e a solidão, física desde logo, com a qual continuo. Oiço de repente alguém que me diz:

- CasiWatt, ouves-me?

- Quem está ai?

Por que não te esqueces da tua ruína e falas do caso de Joseph Joubert, por exemplo?

Olho e não há ninguém e digo ao fantasma que me ponho às suas ordens e depois rio-me e acabo por me diver­tir sozinho, como os verdadeiros heróis.


Enrique Vila-Matas, Bartleby & Companhia, Assírio & Alvim, p. 59 (tradução de José Agostinho Baptista)

domingo, agosto 19, 2007

quarta-feira, julho 18, 2007

Cormac McCarthy


Outrora existiam trutas nos regatos das montanhas. Víamo-las para­das na corrente cor de âmbar, com a fímbria branca das barbatanas a ondular mansamente na água veloz. Cheiravam a musgo quando as se­gurávamos na mão. Luzidias e musculosas e a contorcerem-se. No dor­so tinham desenhos vermiformes que eram mapas do mundo no seu devir. Mapas e labirintos. De uma coisa que não podia ser recriada. Cu­ja harmonia não podia ser reposta. Nos fundos vales onde as trutas vi­viam, todas as coisas eram mais antigas do que o homem e nelas res­soava um mistério.

Cormac McCarthy, A Estrada, Relógio D'Água, p. 187 (tradução de Paulo Faria).

segunda-feira, junho 25, 2007

Joyce Carol Oates



Lamentando-a, talvez. Ao ver-lhe aquela expressão no olhar. A Morena mudou de assunto & começou a falar de homens. Espirituosa & cruel. Homens que ambas conheciam. Patrões dos estúdios, produtores. Actores & realizadores & argumentistas & outros obscuros habitantes marginais do mundo do cinema. Claro que fodera com Z «durante a minha ascensão. Quem não fodeu?» Anos atrás, fodera com «o Shinn, aquele judeu anão e sexy» e ainda hoje tinha saudades de I. E. E Chaplin. Na verdade, Charlie pai e Charlie filho. Edward G. Robinson pai e Edward G. Robinson filho. «Também andou com o Cass e o Eddy G, Norma, hã?» Sinatra, com quem fora casada uns poucos e tremidos anos. Frankie, que perdera o seu respeito quando tentara matar-se com comprimidos para dormir. «Por amor. Por mim. Alguém chamou uma ambulância, não eu, & salvaram-no Eu disse-lhe: “Seu merdas. São as mulheres que se matam com comprimidos. Os homens enforcam-se ou dão um tiro nos miolos.” Nunca me perdoará, mas há outras mulheres a quem perdoará ainda menos.» A Actriz Loura disse hesitantemente que admirava muito a voz de Sinatra. A Morena encolheu os ombros. «Não é mau. Quando se gosta daquelas baboseiras sentimentais de branco. Mas eu prefiro a música negra, o jazz & o rock. O Frankie era okay a foder. Quando não estava bêbedo ou drogado. Era apressado. Um esqueleto palpitante com um caralho entesado. Mas nada como aquele italiano amigo dele... como é que se chama? Foi casada com ele durante algum tempo, Norma. Os jornais falavam todos de vocês.» Acotovelando a Actriz Loura, pis­cando o olho: «"O Yankee Slugger." Gostava que o tratasse assim. Temos de reconhecer que os italianos são homens dos pés à cabeça, hã?»
A expressão do rosto da Actriz Loura! À distância, tudo isto estava a ser observado & conservado & seria um dia recordado indistintamente, mas classicamente, a preto & branco. A Morena, a beldade sexy e renegada de seda roxa rindo & pegando com as duas mãos no rosto chocado de bebé da Actriz Loura e beijando-a em cheio na boca.
Essência de Morena, essência de Loura.

A Monroe queria ser uma artista. Foi das poucas pessoas que conheci que levava aquela merda toda a sério. Foi isso que a matou, mais nada. Queria ser reconhecida como uma grande actriz e queria ser amada como uma crian­ça e obviamente não se podem ter as duas coisas.
Tem de se escolher o que se quer mais.
Eu não escolhi nem uma coisa nem outra.

Joyce Carol Oates, Blondie, Editorial Notícias, p. 530 (tradução de Maria Nóvoa)

My Heart Belongs to Daddy

terça-feira, maio 29, 2007

Roth (3)


His wife at this time - his third and his last - bore no resemblance to Phoebe and was nothing short of a hazard in an emergency. She certainly didn't inspire confidence on the morning of the surgery, when she followed beside the gurney weeping and wringing her hands and finally, uncontrollably, cried out, "What about me?"
She was young and untried and maybe she had intended to say something different, but he took it that she meant what would happen to her should he fail to survive. "One thing at a time," he told her. "First let me die. Then I'll come help you bear up."

Philip Roth, Everyman, Jonathan Cape, 2006, p. 43.

quinta-feira, maio 10, 2007

terça-feira, maio 01, 2007

segunda-feira, abril 23, 2007

terça-feira, abril 03, 2007

Leonard Cohen - "Famous Blue Raincoat"

Its four in the morning, the end of december
Im writing you now just to see if youre better
New york is cold, but I like where Im living
Theres music on clinton street all through the evening.

I hear that youre building your little house deep in the desert
Youre living for nothing now, I hope youre keeping some kind of record.

Yes, and jane came by with a lock of your hair
She said that you gave it to her
That night that you planned to go clear
Did you ever go clear?

Ah, the last time we saw you you looked so much older
Your famous blue raincoat was torn at the shoulder
Youd been to the station to meet every train
And you came home without lili marlene

And you treated my woman to a flake of your life
And when she came back she was nobodys wife.

Well I see you there with the rose in your teeth
One more thin gypsy thief
Well I see janes awake --

She sends her regards.
And what can I tell you my brother, my killer
What can I possibly say?
I guess that I miss you, I guess I forgive you
Im glad you stood in my way.

If you ever come by here, for jane or for me
Your enemy is sleeping, and his woman is free.

Yes, and thanks, for the trouble you took from her eyes
I thought it was there for good so I never tried.

And jane came by with a lock of your hair
She said that you gave it to her
That night that you planned to go clear

-- sincerely, l. cohen

domingo, fevereiro 25, 2007

Chema Madoz


No todo es lo que parece,

y Chema Madoz (Madrid,1958) se encarga de ponerlo en evidencia. Ocultos entre la cotidianeidad surgen nuevos mundos. Nuevas dimensiones que de la mano de la metáfora alteran la percepción de la realidad más inmediata. El absurdo, la paradoja, el humor -por qué no la gregería- se dan cita en el estudio del fotógrafo. La idea inicia su proceso de superación del objeto y establece una descontextualización Dadá. La ironía con la que Madoz asalta modelos reconocibles establece una relación con el espectador que le conduce por los caminos de un universo paralelo.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

André Breton


Os pássaros perdem a forma depois de perderem as cores. São reduzidos a uma existência aracnídea, tão enganadora que atiro as minhas luvas para longe. As minhas luvas amarelas varadas de negro caem numa planície dominada par um frágil campanário. Então cruzo os braços e fica à espreita. Fico à espreita dos risos que saem da terra e florescem imediatamente, umbelas. A noite chegou, semelhante a um salto de carpa à superfície de uma água violeta, e os estranhos loureiros entrelaçam-se no céu que desce do mar. Ata-se um feixe de ramos incendiados no bosque, e a mulher ou fada que o leva às costas parece agora voar, enquanto as estrelas cor de champanhe se imobilizam. A chuva começa a cair, é uma graça eterna e contém os mais ternos reflexos. Numa só gota existe a passagem de uma ponte amarela por carroças lilases, noutra é ultrapassada por uma via ligeira e crimes de albergue. Ao sul, numa enseada, o amor sacode os seus cabelos cheios de sombra e é um barco propício que circula sobre os telhados. Mas os anéis de água quebram-se um a um, e sobre o alto maço das paisagens nocturnas poisa a aurora de um dedo. A prostituta inicia o seu canto mais desviado do que um regato fresco na região da Asa pregada, mas apesar de tudo não passa de ausência. Um verdadeiro lírio erguido à glória dos astros desfaz as coxas da combustão que desperta, e o grupo por eles formado parte em busca da costa. Mas a alma da outra mulher cobre-se de plumas brancas que a refrescam suavemente. A verdade apoia-se nos juncos matemáticos do infinito e tudo avança à ordem da águia à garupa, enquanto o génio das esquadrilhas vegetais bate nas mãos e o oráculo é pronunciado por fluidos peixes eléctricos.

André Breton, Manifestos do Surrealismo, Moraes Editores, 1969, p. 80 (tradução de Pedro Tamen)


terça-feira, janeiro 30, 2007

Eugénio de Andrade



EXCESSIVO É SER JOVEM

E porque me succedeo em lugar de patria
a Cidade de Coimbra, onde gastei a flor
de minha adolescecia...

FREI AMADOR ARRAIS, Diálogo X


Como toda a gente, também eu passei por Coimbra. Foi há vinte e cinco anos, pouco mais ou menos. O mundo estava então em guerra, e foi a guerra, feitas bem as contas, que para lá me empurrou. Uma tarde eu descia o Chiado com uns amigos. Outros subiam com garrafas de champanhe nas mãos: os alemães estavam às portas de Moscovo. Interpelaram-nos; primeiro apenas com certa ligeireza, depois com mal disfarçada insolência. Não queríamos beber pela sua vitória? Não, não queríamos beber; o que queríamos era que nos deixassem em paz. Tínhamos a certeza? Ainda havíamos de nos arrepender! Era bem possível! Daí a algum tempo partia para Coimbra. Coimbra é um modo de dizer - a quinta dos meus amigos ficava a uns seis quilómetros da cidade. Mete-se por Santa Clara, Lajes, Conraria. Aqui, quem tiver olhos na cara fica deslumbrado. Olhando à direita, avista-se a Casa das Lapas, «alcandorada sobre um abismo surpreendente de mágica e de cujos terraços se domina todo o fértil e risonho vale do Ceira». As referências são de Eugénio de Castro e correm impressas no seu Guia de Coimbra. Ele frequentara muito a casa, e ouvi dizer que nas paredes escrevera alguns ditirambos a Baco. É coisa que não posso confirmar - a quinta mudara há pouco tempo de dono, e quando ali cheguei já as paredes da casa haviam sido caiadas. Contudo estou em pensar que, com o tradicional amor às coisas do espírito que por toda a parte se manifesta entre nós, os decassílabos, ou lá o que era, não se devem ter perdido - certamente, antes da caiadela, algum trolha os trasladou carinhosamente para o seu álbum. Pelo vale, realmente fértil, como disse o outro, corre o Ceira: uma faixinha de água, liricamente debruada de choupos e amieiros, que não tarda em entrar no Mondego. Ao fundo, o monte do Senhor da Serra e, mais longe, entre lilás e violeta, a serra da Lousã. Duas vezes por dia, no meio daquele verde todo, dando serventia a duas ou três casas que por ali havia, passava um comboinho, que quase se desfazia ao apitar. Os terraços da casa precipitavam-se no abismo quase a prumo, e entre as fragas rompia uma vegetação áspera, em tufos. Ao entardecer, avistava-se às vezes, a sair duma loca, uma raposa, que logo desaparecia entre as giestas e as urzes; e os milhafres pairavam sereninhos. Por detrás da casa, os pinheiros, os eucaliptos e as acácias eram um imenso leque aberto. E à roda, um silêncio maior que o mundo. Só a música podia, medir-se com um silêncio assim; mas não toda: justamente a música da água ou a de Mozart, a música da terra ou a de Bach. Era uma alegria antiga que se repetia, embora em rigor nunca fosse igual, este crescer, este subir, este fluir - pois para que serviria a música, se não nos levasse nas suas pequenas e sucessivas vagas ao tempo orvalhado e sem mácula? É Edwin Fischer que toca, e talvez nunca ninguém, excepto o próprio Mozart, tenha tocado melhor o Concerto em Ré Menor. Estendo-me na terra: um resto de calor ou a paixão atormentada do allegro invade-me o corpo. É um mal sem remédio, este lamento que não cessa - e começo a ansiar pela romanza. Que espero eu? A carícia da luz, o aroma do amor - eis o que espero naquela cantilena que será escassa de tão breve, pois no meio da mais flagrante transparência irrompe, uma vez mais, a angústia e o terror. O andante transforma-se subitamente em presto, e o piano continuará sozinho, desamparado, a procurar um paraíso que apenas entrevira. O final não apaziguava a minha nostalgia, apesar dos galantes compassos da coda - é que eu sabia que a solidão passara sobre a terra. E era amarga.
Penso em Coimbra e é este o rumor que me chega: um amanhecer de pássaros, o coaxar das rãs pela noite fora. Entre uma coisa e outra, os noticiários da B.B.C., os quartetos de Beethoven, a comovida e tão desenganada poesia de Oliveira Martins, e as discussões intermináveis, só possíveis quando a juventude é excessiva, e não nos cabe nas mãos um tal ardor. Era a ferocidade brutinha, a nossa guerra pessoal, este demónio da negação instalado no corpo, e tudo servia de pretexto: um verso de Ungaretti, a cor dum seixo, um desenho de Matisse. Havia também as lições de matemática (com poemas de Neruda e Maiakovski à mistura) com o Joaquim Namorado, três vezes por semana. Às nove da manhã batia-lhe à porta, e às vezes ficava o resto do dia na cidade. Dava então um salto ao consultório do Miguel Torga ou procurava o Eduardo Lourenço ou o Carlos de Oliveira. Eram os meus amigos de Coimbra. E havia ainda o David. Lá estava ele à minha espera, à saída da ponte, com os últimos discos que recebera de Lisboa.
- Vamos? Quem é que toca o Brahms? Há ali uma canforeira, anda ver. A primeira vez que vim a Coimbra, o Torga trouxe-me a este jardim, atravessou o canteiro e foi colher uma flor para me dar. Foi por essa flor que comecei a querer-lhe bem. Foi ele que me levou a ler o Oliveira Martins. Tens de começar a lê-lo: o primeiro encontro com este homem é uma fascinação. Algumas das páginas que escreveu sobre o Duque de Coimbra são lindíssimas. O Oliveira Martins tem um fraco por D. Pedro; eu também. Sabes qual é a divisa dele? Desyr. Uma só palavra, que naquele tempo, quando se não era nobre, conviria dizer em segredo, atravessou noites e noites da mais espessa retórica para ser agora a razão mesma, ou o poema, da nossa juventude.
Désir. À mon seul déslr... Lembras-te do juramento que fizeram, ele e o Conde de Avranches, ali na Igreja de Sant'lago? Vamos até lá? «Conde, sabei que eu sinto já a minha alma aborrecida de viver neste corpo, e desejosa de se sair de suas paixões e tristezas. Pois que as coisas me não obedecem, determino morrer e acabar inteiro, e não em pedaços. Pela criação que vos fiz, pela irmandade que comigo mereceste ter na santa e honrada Ordem da Jarreteira, e principalmente pela vossa bondade e esforço, quero saber se no dia em que deste mundo me partir, quereis também ser meu companheiro?» Lembras-te da resposta do Conde? «Sou muito contente ter-vos essa companhia na morte, assim como vo-la tive na vida; e se Deus ordenar que do mundo vossa alma se parta, sede certo que a minha seguirá logo a vossa; e se as almas no outro mundo podem receber serviço umas das outras, a minha nesse dia irá acompanhar e servir para sempre a vossa...» Só em Shakespeare é que há coisas assim, não é verdade, David? É estranho: como é que uma paisagem cheia de graça e doçura, feita para o oiro fulvo das abelhas, pode ter sido cenário de tanto e desvairado amor? Pedro, que abriu os olhos a esta luz primeira; por aqui endoideceu de paixão. O Infante D. João, por sinal filho de Pedro e de Inês, levou a exasperação do amor à raiz da carne (a expressão é de Frei Luís de Sousa), e aqui assassinou a formosa Maria Teles - uma punhalada no seio e outra nas virilhas. Com mais razões que Francesca, ela poderia ter dito E 'l modo ancor m'offende. Quanto ao Infante D. Pedro e ao Álvaro Vaz, convenhamos que mesmo entre gente de Cavalaria não são frequentes mortes assim: - «ó corpo, já sinto que não podes mais, e tu minha alma já tardas...» Em que estás a pensar, David? Vamos então ouvir o Brahms? Nesta paisagem de écloga quinhentista, não houve engano de alma ou memória de alegria que não acabassem em puro desespero. Alma asómate ahora a la ventana: j'ai tant rêvé de toi que tu perds ta realité! Amor de mis entrañas, viva muerte, amor ch'a nullo amato amar perdona, que quero eu ganhar que ser perdido? S'un'anima in due corpi é fatta eterna, direi ditosa ou triste a dura sorte? For as the sun is daily new and old, so is my love still telling what is told... E se fôssemos a Celas? Imagina que o claustro e parte do convento, no fim do século dezanove, foram postos em leilão por um conto de reis! E se calhar ninguém lhe pegou. As providências que o Governo tomava, conta o Ramalho, era serrar os capitéis e recolhê-los num museu. Que massacre! Aqueles capitéis, cada um deles merecedor de um poema, como belas cabeças decapitadas, atirados para o canto de qualquer pátio húmido, servindo de suporte a alguns vasos de sardinheiras... E a propósito de poemas: escrevi um há dias; por reacção ao dark god do Lawrence foi de um green god que falei. São mais uns versos que fico a dever às águas deste rio que a Eufrosina queria descer, levando o seu cravo por única companhia. Que levaríamos nós, se partíssemos juntos? Foi Nietzsche que falou da fatalidade da música como de uma ferida aberta. Nesta cidade, só tu e eu devemos sofrer deste mal - estamos ambos despertos; ambos crescemos violentamente para o nosso ser; ambos temos consciência de que os nossos acordes mais profundos obedecem a uma lei que concilia o entusiasmo mais glorioso com a mais dura disciplina; e não há em nós lugar senão para a alegria de dar testemunho na terra do esplendor mortal dos dias. Quando procurava outra palavra para dizer música, Nietzsche encontrava apenas Veneza. E nós? Alguma vez a palavra música nos virá aos lábios ao pensarmos em Coimbra? É certo: na terminologia de Unamuno, também esta paisagem é mais musical que pictórica. Mas não era disso que eu estava a falar. Uma paisagem assim é mesmo um perigo público - dizem-na poética, e consagram-lhe sonetos. Ora a poesia é inimiga do poético. Os letrados que por aqui passaram quase sempre se esqueceram disso; o resultado é não haver outra cidade sobre a qual se tenham despejado tantos e tão maus versos. Debaixo de tal entulho, custa a descobrir qualquer coisa em que o espírito não tenha abandonado o corpo, e respire. Não espanta que por aqui a poesia tenha escolhido a prosa para habitação. Queres vir almoçar comigo amanhã? Pedirei à Nelmi que faça cannelloni - ela garante que ninguém os faz melhor em Florença. Quando chegares à Quinta da Várzea não te esqueças de olhar à direita: o jacarandá está florido, e um jacarandá em flor é das coisas mais formosas de ver! Quando tiver dinheiro hei-de comprar os Quintetos para cordas, de Mozart. Ouvi ontem o K.614, que ele escreveu uns meses antes de morrer. Porque também para o Mozart houve morte, caríssimo! E se Mozart morreu, como poderão os meus amigos ser imortais? O Aires, a Nelmi, o Armando, a Matilde, o Célio, todos morrerão, e eu com eles a cada instante. Mesmo tu, David, acabarás também por morrer; as cordas deixarão de soar; uma poeira muito fina poisará docemente, docemente poisará na tua harpa, para sempre. Ecco, siamo arrivati. Não faças cerimónia comigo...
- Entra, Eugénio.

São Lázaro, Junho, 1970

Eugénio de Andrade, in Duas Cidades – Antologia sobre o Porto e Coimbra, Editorial Inova Limitada, p. 47.

sábado, janeiro 27, 2007

Bill Evans - Waltz For Debby

Live recordings from Stockholm (1964)

Chuck Israels on bass and Larry Bunker on drums

domingo, janeiro 21, 2007

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Evelyn Waugh




No dia seguinte, o vento tinha amainado e nós balouçávamos de novo ao ritmo da ondulação. Falava-se menos agora de enjoos do que de ossos partidos; pessoas tinham caído durante a noite, e deram-se vários acidentes desagradáveis nos soalhos das casas de banho.

Nesse dia, porque tínhamos falado muito no dia anterior e porque o que tínhamos a dizer precisava de poucas palavras, falá­mos pouco. Lemos; Julia descobriu um jogo de que gostava. Quando ao cabo de longos silêncios falámos, vimos que os nossos pensamentos tinham andado a par.

«Tens estado a guardar a tua tristeza», disse eu.

«Foi tudo o que ganhei. Disseste ontem. É a minha recompensa.»

«É uma paga da vida. Uma promessa pagável à vista.»

A chuva parou ao meio-dia; à tarde, as nuvens dispersaram-se, e o Sol, atrás de nós, entrou subitamente no salão onde estávamos sentados, ofuscando todas as luzes.

«O pôr do Sol», disse Julia, «O fim do nosso dia.»

Levantou-se e, apesar de o balanço do navio parecer não ter fim, levou-me para o convés. Enfiou o braço no meu e a mão na minha, dentro do bolso do meu sobretudo. O convés estava seco e vazio, varrido apenas pelo vento da deslocação do navio. Quando parávamos, no laborioso caminho em frente, longe da fuligem voadora da chaminé, éramos alternadamente empurrados um con­tra o outro, depois puxados com força, quase separados, braços e dedos entrelaçados quando segurava a amurada e Julia se agarra­va a mim, juntos novamente, logo afastados; depois, num balanço maior do que os outros, encontrei-me atirado contra ela, apertan­do-a contra a amurada, afastando-me dela mas prendendo-a entre os meus dois braços de cada um dos lados, e o navio estabilizou no fim da descida como que a arranjar força para a subida, e ficá­mos assim abraçados, ao ar livre, rosto contra rosto, o seu cabelo esvoaçando e tapando-me os olhos; o horizonte escuro de água em torrente, brilhante agora com o oiro do pôr do Sol, continuava por detrás de nós, depois começou a descer até que consegui ver através do cabelo negro de Julia um amplo céu dourado, e ela foi atirada contra o meu coração, segura pelas minhas mãos à amu­rada, o seu rosto ainda apertado contra o meu.

Nesse minuto, com os lábios de encontro ao meu ouvido, e a respiração quente no vento salgado, Julia disse, embora eu não tivesse falado, «sim, agora», e quando o barco se endireitou e começou a navegar em águas mais tranquilas, Julia levou-me para baixo.

Não era tempo para doçuras de luxúria; elas viriam, na devida altura, com as andorinhas e as flores da tília. Agora sobre a água rude devia observar-se uma formalidade, mais nada. Era como se uma cedência dos seus rins tivesse sido combinada. Eu fazia a minha primeira entrada como precursor de uma propriedade que gozaria e desenvolveria à vontade.

Nessa noite jantámos na parte de cima do navio, no restau­rante, e através das janelas as estrelas saíram e passaram pelo céu como uma vez, lembrei, as vira passar sobre as torres e espigões de Oxford. Os criados prometeram que na noite seguinte a orquestra tocaria de novo e que a sala se encheria. Era melhor reservarmos agora, disseram, se queríamos uma boa mesa.

«Oh querido», disse Julia, «como nos podemos esconder com bom tempo, nós, órfãos da tempestade?»

Nessa noite não consegui deixá-la, mas na manhã seguinte, cedo, quando mais uma vez fazia o caminho de regresso pelo corredor, descobri que conseguia andar sem dificuldade; o navio navegava facilmente sobre um mar calmo, e percebi que a nossa solidão tinha terminado.

Evelyn Waugh, Reviver o Passado em Brideshead, Moraes, 1983, p. 246 (tradução de Ana Maria Rabaça)

terça-feira, janeiro 16, 2007

sábado, janeiro 06, 2007

Leopoldo M. Panero


O lamento de José de Arimateia

Não suporto a voz humana,
mulher, tapa os gritos do
mercado e que não chegue
até nós a memória do
filho que nasceu do teu ventre.

Não há outra coroa de
espinhos
que as recordações
que se cravam na carne
e fazem uivar como
uivavam

no Gólgota os dois ladrões.


Mulher,
não te ajoelhes mais ante
o teu filho morto.
Beija-me os lábios
como nunca fizeste
e esquece o nome
maldito
de Jesus Cristo.

Dança na neve
mulher maldita
dança até que teus pés
descalços sangrem,
o Sabbath começou

e nas casas tranquilas
dos homens
há muitos mais lobos
que aqui.
Depois de dançar toca

a neve: verás que é boa

e que não queima tuas mãos

como a fogueira

em que tanta beleza
arderá um dia.

Partindo dos pés

até chegar ao sexo
e arrasando os seios

e chamuscando o cabelo

com um rangido como o de
moscas ao estalar na

vela.
Assim arderá o teu corpo
e do Sabbath restará
apenas uma lágrima
e o teu uivo.

Leopoldo María Panero, Poemas do manicómio de Mondragón, Alma Azul, 2003, pag. 53 (tradução de Jorge Melícias)

Alain Magallon