quarta-feira, dezembro 27, 2006

domingo, dezembro 17, 2006

José Bento


Se o não saber teu nome é adormecer-te

na véspera da minha morte no meu peito

pra que a manhã, acordando no meu leito,

me encontre rígido e frio por conter-te,


dá-me o silêncio terreno mais perfeito:

esse é o rosto com que anseio conhecer-te.

Qualquer palavra seria o amanhecer-te,

roubando à noite o teu perfil desfeito.


Teu nome é claridade em que te ocultas,

madrugada com que iluminas minha boca:

nupcial é o azul do dia em que te avultas.


Afogando-me em teu sangue me destruo:

singro nas veias da fonte que provoca

a solidão que de teus olhos eu construo.



José Bento, Silabário, Relógio D'Água, 1992, p. 231

sábado, dezembro 16, 2006

Álvaro Cunqueiro


Não falo dos vinhos galegos só por falar; respeito o seu sa­cramento, e apesar de não estudar teologia, sinto-me à vontade na disputa dos seus sais, humores e sabor com a autoridade do escanção. Não venho armado de vasilha para provar mostos, mas posso ser retratado com a cunca do meu apelido na mão, onde brilha um ribeiro ou faz espuma um palhete do Rosal. Bebi lado a lado com a melhor gente do meu país, e esta é a escola da minha loa e memória dos vinhos galegos, que são, tal como nós somos, humildes e mansos, honestos, suaves e indolentes.

O Minho comanda a física e a metafísica da Galiza com a veia larga e verde das suas águas escuras. Na província de Lugo, a sua capital Chantada começa a beber vinho da ribeira e vinhos de Lemos. Os brancos são de maçãs reinetas e os tintos da clara violeta, alegres, soltos e pobres. Eu gosto destes pequenos tintos. Quando o Minho menos o espera, chega, corredor, com lenda de ouro, como um indiano, o Sil, leonês de origem. Que vinhos ele traz! Começou em Ponferrada e no Bierzo com uns vinhos agudos, temperados e ruidosos, com o seu acrezinho e a sua espuma murmuradora, e chegou ao Barco com os Valdeor­ras sérios, cabais. Não gosto muito do branco de Valdeorras; falta-lhe qualquer coisa que a língua não sabe o que é; mas o tinto de Valdeorras é um vinho grave, amplo, com a medida da boca quando se come com força, e entre peito e costas, quando com ele acalmamos a sede, com a paz e a doçura com que uma mão amiga se apoia no nosso ombro. Quase sem nos mover­mos, vamos do Barco à Rua Petin, ao Bibey e ao Quiroga. São os vinhos do Sil. Se na Galiza tivesse havido no século XVIII um marquês de Pombal, teríamos uma real Companhia dos Vinhos do Sil. Os ingleses gostavam deles, e levaram-nos juntamente com as suas aguardentes, durante duzentos anos. Os vinhos de Rua são como os de Valdeorras, embora um pouco menos graves. Por aquelas terras manda o Amandi, que, dizem, o imperador Augusto saboreou. Eu, aquando do bimilenário, bebi um pouco, para estar à altura da paz romana. O vinhos quiroguenses são planos e combatem de uma para a outra margem do Sil. Vinhos beneditinos, os monges de Ribas de Sil trouxeram-nos da doce França para sofrerem o orvalho galego. Ficaram muito bem; cálidos, gordinhos, vivazes. E a sua aguardente é o melhor que existe na Galiza para essa fantasia que os Taboada de Tor inventaram e que se chama «licor de café»…

Aqui, de Rua até Trives, sobe a mais lavrada montanha da Terra. Já o padre Sarmiento ficou pasmado e disse que aquelas vinhas magistrais eram a nona maravilha do Mundo. À base de muros e contenções, o galego fez um berço da terra dos desmontados e fundações, e em sulcos de pedra e terra plantou vinhas. Este vinho careado de sol é de sabor curto, mas nobre, forte, pintado. Se cortarem presunto em Trives - o roxo presunto curado por fumo e invernia naquelas altitudes presididas pelo Manzaneda - acompanhai-o com o seu vinho.

E, sem mais, já estamos no rio Minho. Leva, juntamente com as do Sil, as águas do Avia. Ribeiro de Avia. Daqui são os ribeiros; daqui é o tostado; daqui é o vinho da região. Eu bebo vinho de Ribeiro, branco ou tinto, sempre que posso. São vinhos que não dão para melhor, que são um pouco desajeitados, mas que dão a temperatura do homem. Eu confio ainda num Sapallanzani que esclareça que estes senhoriais, honrados e católicos vinhos do Ribeiro são os tintos mais adequados para o estômago do euro­peu romano. E um bom tostado, ambrosia, mãe de levitações. Ribadavia - que é, segundo Risco, como em Praga - tem o mesmo sabor claro e aberto do seu nome: a vinho, a feno, a pêssego e a Outono.

Há um refrão antigo que digo aqui, como quem diz urna antiga canção:

O val do Rosal que moito val,

o val Fragoso e moi fermoso,

pro o val Miñor, e moito milhor.

Este refrão é como uma canção. Nestes três vales medram ve­lhas, puríssimas e nobres vinhas, palhetes, rosés, rodeiros. Os pa­lhetes brancos que saltam espumosos; os tintos, tão mate e pau­sados, canelados, lentos, que dão a volta à cabeça como numa muiñeira ritual e lacónica, de passos contados, a música em nú­meros, o lagarto da saia da Carolina abanando o rabo. Os albariños tão frescos, tão cheios de uva, com aquela cor, aquela camélia que os encerra. Aqueles rodeiros, vinhos de tasca, alvoroçadores, acres, que adquirem logo o sabor da madeira e entristecem… Nos três vales que o refrão louva crescem vinhas ricas e senhoriais, cujos vinhos derramam por aquelas terras uma neblina cor-de-rosa e uma brisa mansa.

Um lugar à parte para a península do Morrazo, não por lá se beberem vinhos ilustres, mas por eu lá ter bebido, mano a mano, com Maumau, com Agustín Cela, com o tio Juanito, com José Maria Castroviejo, com Juan Santos Ríos... Vinho de Temperán, que dá força viril, o branco do tio Juanito, alegre e longo; vinhos do Casal de Acuña, que corriam atrás da anchova; vinhos taberneiros, turvos e pobres, salobres, aguardentes que parecem lixa, boas para escoceses, talvez. E aguardente de ervas, medicinal, saponácea, anisada, que faz arrotar...

Vinhos do Lérez e do UIla, vinhos das Rias Baixas. Vinho espadeiro, que é o vinho da muiñeira e da riveirana. Mais do que do Fefiñanes, eu gosto é dos outros mais secretos albariños, príncipes requintados, quase como uma serenata italiana no silêncio de Cambados. E metendo-nos terra dentro, há vinhos como cristãos-velhos, inteiros, justos e borrachos.

Em Santiago de Compostela bebem-se todos estes vinhos melhor do que em qualquer outra parte do Mundo. Lá, entre pedra e céu, trepidando nos barris quando repicam os sinos da basílica, com aquele frio de chuva e solidão que envolve Compostela, em «El padre Benito» ou no «Senado», os vinhos da região espreitam nas taças com os seus olhos louros de pérola que chegam ao fim da sua peregrinação. E em Maio, pela Ascensão do Senhor, no carvalhal de Santa Susana, os ribeiros embalam o corpo do polvo de Arosa, curado com o vento atlântico.

Não quero deixar sem o seu ramo de louro - lambrequim dos escudos das tabernas galegas - a cidade de Betanzos, onde, quando os vinhos cadetes são frouxos, se bebe muito, embora não tanto como em Lugo, ou em Compostela. Mas em Betanzos bebe-se bem porque as suas tabernas são as mais aromáticas do país galego e as suas portas são coroadas com o ramo do louro romano. Vinhos galegos. São como nós, os galegos, somos. E, também, como as galegas. Apesar do seu sabor acre, das suas fracas forças e poucos calores, da sua cal descansada, eu gosto tanto deles como dos burguinhões, bordéus, sauternes ou quaisquer outros. Têm um amor que deve ser procurado neles, ajudando-os a deixarem-se conquistar. Vinhos humildes, honestos, mansos, suaves e indolentes, na minha mão levanto a taça para os recordar e louvar, do Minho ao Mandeo, dando a volta no mapa da minha terra.

Álvaro Cunqueiro, A Cozinha Cristã do Ocidente, Relógio D'Água, 1993, p. 95

terça-feira, dezembro 12, 2006

Javier Marías


El hombre sentimental é uma história de amor em que o amor já não se vive mas se anuncia e recorda. Pode isto acon­tecer? Algo como o amor, que é sempre urgente e inadiável, que requer a presença e a consumação ou a consumição ime­diata, pode anunciar-se sem que exista ainda, ou recordar-se realmente quando já não existe? Ou será que o próprio anún­cio e a mera recordação formam,e ainda respectivamente, parte desse amor? Ignoro-o, mas acredito que o amor está em larga medida baseado na sua antecipação e na sua memória. É o sentimento que exige maior dose de imaginação, não só quando se intui, quando o vemos chegar, e não só quando quem o experimentou e perdeu tem necessidade de o expli­car, mas também enquanto o próprio amor se desenvolve e tem plena vigência. Digamos que é um sentimento que exige sempre algo de fictício além daquilo que na realidade conse­gue. Dito por outras palavras, o amor tem sempre uma pro­jecção imaginária, por tangível ou real que o pensemos num momento dado. Está sempre por realizar; é o reino daquilo que pode ser. Ou então daquilo que poderia ter sido.


Javier Marías, Literatura e Fantasma, Relógio d'Água, 1998, p. 72 (tradução de Francisco Vale)

domingo, dezembro 10, 2006

Víctor Jara: Vamos por Ancho Camino

Hoje é um bom dia para recordar-te.

segunda-feira, novembro 27, 2006

Mário Cesariny (1923 - 2006)



Autografia

I


Sou um homem

um poeta

uma máquina de passar vidro colorido

um copo uma pedra

uma pedra configurada

um avião que sobe levando-te nos seus braços

que atravessam agora o último glaciar da terra

o meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado à morte!

os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que existe nele uma árvore miraculada

tenho um pé que já deu a volta ao mundo

e a família na rua

um é loiro

outro é moreno

e nunca se encontrarão

conheço a tua voz como os meus dedos

(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)

tenho um sol sobre a pleura

e toda a água do mar à minha espera

quando amo imito o movimento das marés

e os assassínios mais vulgares do ano

sou, por fora de mim, a minha gabardine

e eu o pico do Everest

posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita

e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca

porque tu és o dia porque tu és

a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola

do rei morto, do vento e da primavera


Quanto ao de toda a gente - tenho visto qualquer coisa

Viagens a Paris - já se arranjaram algumas.

Enlaces e divórcios de ocasião – não foram poucos.

Conversas com meteoros internacionais - também já por cá passaram.

Eu sou no sentido mais enérgico da palavra

uma carruagem de propulsão por hálito

os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por

onde passei uma só vez

tudo isso vive em mim para uma só história

de sentido ainda oculto

magnífica irreal

como uma povoação abandonada aos lobos

lapidar e seca

como uma linha férrea ultrajada pelo tempo

é por isso que eu trago um certo peso extinto

nas costas

a servir de combustível

e é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir

a ser escrupulosamente electrocutadas vivas

para não termos de atirá-las semimortas à linha


E para dizer-te tudo

dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar

estou em franca ascensão para ti O Magnífico

na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos

e que o homem-expedição de que não há notícias nos

jornais nem lágrimas à porta das famílias

sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido

entre lagos de incêndio e o teu retrato grande!


II



E era uma vez este homem

que era um chrevrolet

casado com uma mulher de vidro

que era uma colher de prata.

Tempos depois sobreveio uma zanga

que era uma criança nua

entre umas tábuas de passar a ferro

e dois elevadores lindíssimos


Metrónomo (disseram eles)


Verdadeira saudade pernilonga

o pára-raios pôs-se a esfalfar romanticamente o toldo

de uma máquina de escrever disposta para o amor às

quatro no interior de um quarto

que era uma planície redonda semeada de vírgulas violeta

com um pequeno garfo nas costas

que era o amanhecer que é uma árvore

na. boca de uma mosca de ve1udo rosa


Metrónomo metrónomo (disseram eles ainda)

é uma árvore é uma pedra que vai começar o terceiro canto ?


É a aflição dos outros, meu amor.


Lembro-me de tudo como se fosse hoje

as crianças brincavam nos jardins

com um pequeno garfo nas costas

sem dúvida o mesmo de há bocado

e até era domingo tu

de repente apareceste muito devagar a meu lado

arrastando sem esforço dois aparadores baratíssimos

ai! a minha tristeza não era uma barca

breve houve lapidações em série

com um ligeiro clic de chaufagem aberta

todos os meus irmãos começaram a andar velozmente para trás

pobres dos meus irmãos que será feito deles e de nós que fizemos?

Impossível saber-se até onde irá connosco a nossa confiança


Ficaste, mão que aperto todas as manhãs para atravessar incólume os espaços vazios
Ficaste, peito sangrento do mundo largada para o sol entre os bichos e eu
tu meu único amor meu amor meu múltiplo amor meu
tu que és uma mesa redonda enamorada dos seus próprios círculos
um alcaide sem discos um maço de cigarros
que se descobriu flor
que se descobriu água
que se abriu de repente
que gritou de repente
que implantou na minha vida de repente a corola perfeita
da desorganização
Não me encontrarás como um anel na curvatura I - Z do teu dedo mindinho
nem na treva que exalta os teus cabelos
nem no espantoso hall da tua testa fechada iluminadíssima
encontrar-me-ás numa nuvem de escamas milimétricas em torno da tua boca

com toda a força principal na boca

ou nesta casa que é um homem morto

rodeado de rostos sempre translúcidos



- Onde está o homem que era um chevrolet
casado com uma vírgula de amianto?
Certo e sabido que anda sobre as águas que o matei sem querer

estas estrelas brilham com tal nitidez

que acabam sempre por tornar-se suspeitas


Não importa transfigurá-lo-ei em poderoso egípcio


Abracadabra! Vram! Abracadabra!


Os teus olhos estão belos como a lua dos rios exteriores



Mário Cesariny, burlescas, teóricas e sentimentais, Editorial Presença (1972), p. 105.

quinta-feira, novembro 23, 2006

A LUZ DE EDWARD HOPPER


A luz que banha os quadros do pintor americano Edward Hop­per é a luz mais triste do mundo. Alguém poderia escrever um tratado sobre as diferenças entre sociedades a partir da maneira como os seus pintores pintavam a luz, tentar explicar por que poucas coisas continuam sendo tão estranhamente americanas e evocativas como o Sol nas paisagens urbanas de Hopper e contras­tá-la com o Sol de Monet ou Renoir, ou até o Sol de Van Gogh, que era o Sol da loucura mas não era tão desesperado. Alguém, mas não eu.

Luís Fernando Veríssimo, Expresso de 18/11/2006 (Actual, p. 37)

domingo, novembro 12, 2006

Elis Regina

Saudade dela

sexta-feira, novembro 10, 2006

Roth (2)



Naquela primeira noite estivemos sentados no sofá a ouvir Dvorák. A certa altura, Consuela encontrou um livro que lhe interessava - não me lembro qual era, mas nunca esquecerei o momento. Ela virou-se - eu estava sentado onde tu estás, no can­to do sofá, e ela estava sentada ali -, deu meia volta ao tronco e, com o livro posto no braço do sofá, começou a ler e, como esta­va inclinada para a frente, vi-lhe as nádegas sob o vestuário, vi claramente a sua forma e isso foi um tremendo convite. Ela é uma jovem mulher alta num corpo ligeiramente estreito de mais. É como se o corpo estivesse um nadinha desajustado. Não por ela ser demasiado gorda. Mas também não é, de modo algum, do tipo anoréctico. Vê-se nele carne feminina, e é carne boa, abun­dante - é por isso que a vemos. Ela ali estava, pois, não aberta­mente atravessada no sofá, mas, mesmo assim, com as nádegas a modo que meio viradas para mim. Uma mulher tão consciente do seu corpo como Consuela e a fazer aquilo, concluí, convi­dando-me para começar. O instinto sexual ainda está intacto - ­nenhuma da correcção cubana interferiu. Vejo, naquele rabo meio virado, que nada se atravessou no caminho da coisa pura. Nada daquilo de que faláramos, nada do que eu escutara a res­peito da sua família, nada interferira. Ela sabe como virar o rabo, apesar de tudo isso. Vira-o do modo primordial. Exibindo-o. E a exibição é perfeita. Diz-me que não preciso mais de reprimir o desejo de lhe tocar.

Comecei a acariciar-lhe as nádegas e ela gostou.

- Isto é uma situação estranha - disse. - Nunca poderei ser tua namorada. Por todas as razões possíveis. Vives num mundo diferente.

- Diferente? - Ri-me. - Diferente como? - E, claro, neste ponto preciso começamos a mentir e dizemos: - Não é um lugar assim tão imponente, se é isso que estás a imaginar. Não é um mundo assim tão glamoroso. Nem sequer é um mundo. Apareço na televisão uma vez por semana. Uma vez por semana falo na rádio. Com intervalos de algumas semanas apareço na imprensa escrita, nas páginas de trás de uma revista lida por vinte pessoas, no máximo. O meu programa? É um programa cultural das manhãs de domingo. Ninguém o vê. Não é um mundo assim tão especial que possa causar preocupação. Posso levar-te para esse mundo com facilidade. Por favor, fica comigo.

Ela parece estar a pensar no que eu disse, mas que espécie de pensamento poderá ser?

- Está bem - diz -, por agora. Por esta noite. Mas nunca pode­rei ser tua mulher.

- Combinado - respondi, mas pensei:

Quem te pediu que fosses minha mulher? Quem levantou essa questão? Eu tenho sessenta e dois anos e ela tem vinte e quatro. Mal lhe toquei no rabo e já diz que não pode ser minha mulher? Não sabia que continuavam a existir raparigas assim. Ainda é mais tradicional do que eu imaginava. Ou talvez mais estranha, mais invulgar do que imaginava. Como viria a desco­brir, Consuela é uma mulher comum, mas sem ser previsível. Não há nada de maquinal no seu comportamento. É ao mesmo tempo específica e misteriosa, e estranhamente cheia de peque­nas surpresas. Mas, sobretudo no princípio, foi-me difícil decifrá-la e, erradamente - ou talvez não, atribuí isso à sua cubanidade.

Philip Roth, O Animal Moribundo, Dom Quixote, 2006, p. 29 (tradução de Fernanda Pinto Rodrigues)

terça-feira, novembro 07, 2006

Merz - Verily

Ramón Gómez de la Serna


O Cadáver Sábio

Penso às vezes num cadáver que uma certa tarde estudei sozinho na sala de dissecção da Faculdade.

Ah, como teriam sido uns sábios aqueles barbeiros que frequentavam na Faculdade um curso de anatomia e cirurgia, se pudessem ter estudado muitos cadáveres como aquele que perfurei e estudei dois dias a fio!

Nesse cadáver, foram muitas as coisas que se tornaram claras, parecendo que ele ajudava a resolver as dificuldades que eu nele ia estudando. Foi ao dissecar aquele cadáver que pude compreender muitas das coisas de que depois me servi em muitos dos meus tratamentos.

Não encontro teoria capaz de explicar como pôde ser tão clarividente aquele morto; mas a verdade é que de dentro da sua morte agia como um mestre. Várias vezes, aberto como o tinha e já sem coração, fitei-lhe o rosto para ver se ele sorria ao ver como eu acertava em muitas coisas que até então não tinha podido resolver; mas no seu rosto havia apenas sereni­dade e uma espécie de pacífica suficiência. Muito respeitosa­mente e com o cuidado com que se colocam as pinças no açucareiro, assim lhe aplicava as minhas pinças no peito.

Não poderei esquecer aquele cadáver, um cadáver como nunca vi outro. Com os preparados que fiz com os seus tecidos e os seus micróbios, pude resolver vários casos difíceis, isolei alguns novos micróbios.

Não é isso porém o mais importante.

O importante é que ele estava cheio de associações de ideias.

Se tivesse podido durar mais dois dias sem se decompor, teria até descoberto a cura para o cancro.

Admirável cadáver!

Ramón Gómez de la Serna, O médico inverosímil, Antígona, p. 226 (tradução de Júlio Henriques)

domingo, outubro 29, 2006

Laura Veirs - Galaxies

When you sing, when you sing
The stars fill up my eyes
Galaxies pour down my cheeks
Galaxies�they flood the street
Galaxies

When we dance, when we dance
Eels and sea grass float on by
I'm 10,000 leagues beneath the sea
10,000 leagues�beneath the green
10,000 leagues

When we kiss, when we kiss
Bears and boulders vibrate through the air
Gravity is dead you see
No gravity�all I need is beating red
No gravity�

sexta-feira, outubro 27, 2006

Nick Hornby


'Caravan' – Van Morrison

A esplendorosa versão de Caravan em Its Too Late To Stop Now (indiscutivelmente o álbum mais agradável de Van Morrison, portanto nem vale a pena contrariarem-me), soa-me como se pudesse ser passada sobre o genérico final do melhor filme da nossa vida; e quando alguma coisa nos soa assim, podemos pensar, por associação de ideias, que também podia passar no nosso funeral. Creio que não estarei aqui a realçar demasiado a importância da nossa própria vida. Nem todos os filmes têm de ser como o Lawrence da Arábia ou como o Apocalypse Now, e era preciso ter-se muito pouca sorte, pelo menos nesta parte do mundo (e se você entrou numa livraria e com­prou este livro, isso significa que vive nessa parte do mundo a que me refiro), em não sentir alguns momentos de alegria ou pura esperança, sensações de triunfo absoluto ou simples contentamento no meio de tanto trabalho, desilusões e sofrimento. Para mim, Caravan reconhece e sintetiza tudo isto, e o facto de aquilo que produz a partir de toda esta confusão extraordinária respirar alegria não implica que a canção seja trivial.

Para mim, Caravan não é uma canção sobre a vida ou a morte; é uma canção sobre ciganos felizes, acampamentos, ligar a rádio e coisas do género. Mas na sua passagem longa e com acompanhamento improvisado exactamente antes do clímax, quando o saxofone se insinua docemente no tema cheio de vida tocado pelas cordas ao estilo da música de câmara contemporânea enquanto o piano paira melodicamente sobre todo o conjunto com notas agudas de blues, banda de Morrison parece concentrar-se num momento que se situa entre a vida e as suas consequências, no enorme átrio barroco de um sítio onde podemos parar para reflectir sobre todo o nosso passado. (Bolas! Súbito acesso de pânico: conseguem ouvir tudo isto, vocês que têm o álbum e estão suficientemente curiosos com esta descrição para depois irem ver se ouvem o mesmo? Possivelmente não. Mas - acabou o pânico - o objectivo deste livro não é termos a capacidade de ouvir as mesmas coisas; por outras palavras, não se trata de análise musical. O máximo que posso esperar é que também tenham as vossas interpretações sobre aquilo que ouvem, que passem muito tempo a ouvir música e que vejam rostos no fogo que ela propaga.) E, embora saibamos que não serei eu a reflectir, será arrogância esperar um pouco de reflexão por parte dos amigos e familiares? Afinal de contas, é o meu funeral. E não têm de pensar só sobre mim; podem pensar em todo o tipo de coisas, desde que estejam à altura da situação, da música e que não tenham a ver com comida, e-mails, e calçado, etc.

A única coisa que me preocupa no facto de ter Caravan como música no meu funeral é o naipe de cordas. Ao ouvir o tema, será que as pessoas vão pensar que estou a fazer alguma concessão à música clássica? Será que vão dizer para si próprios, «Pena que te­nha perdido as suas convicções no fim da vida, como toda a gen­te? Não quero que eles pensem assim. A menos que me aconteça alguma coisa inimaginável nas próximas décadas hei-de passar a vida a ouvir mais ou menos música pop de vários estilos. (tenho uns poucos CD's de música clássica e também os ponho a tocar de vez em quando; mas nunca reajo à música de Mozart ou de Haydn, vejo-a meramente como qualquer coisa que faz com que a sala tenha temporariamente um cheiro diferente, como uma vela perfu­mada, e não gosto de tratar a arte dessa maneira, com falta de res­peito.) Mas também sou daqueles que não se arrependem. «Ainda bem que foi preso por ter alguma coisa a ver com a demência da música pop. Ponto final», afirmou recentemente um famoso escritor e colunista corrosivo ao tentar justificar a prisão de um grande e bem conhecido manda-chuva do mundo da música, mas todos nós já ouvimos este tipo de coisas.

Não faço a mínima ideia se, para ele, a palavra «pop» tem o mesmo significado tem para mim, se pensa que Dylan, Martin Graye e Neil Young são dementes. Desconfio que sim. É uma queixa que nunca compreendi, porque a música, tal como uma cor ou uma nuvem, não é nem muito inteligente nem pouco inteligente - é aquilo que é. O acorde, a base de sustentação mais simples da canção mais insignificante e pateta, é uma coisa maravilhosa, perfeita e misteriosa, e quando um zé-ninguém inculto, emocionalmente falho de qualquer tipo de literatura junta uns tantos acordes, tem todas as probabilidades de estar a criar algo de belo e portentoso. Não quero ler livros para dementes, mas os livros são construídos a partir de palavras, os nossos únicos instrumentos de pensamento. Apesar da sua crueza e simplicidade, Twist and Shout soa bem - com efeito, qualquer tentativa para o sofisticar faria com que soasse muito pior - e eu discordo intrínseca e profundamente com qualquer pessoa que avalie a complexidade e inteligência musical, com superioridade. Esta música não funciona assim, e deve ser por isso que estas pessoas desprezam a música pop, por ser uma das poucas coisas que não funcionam assim. (É frequente odiarem igualmente o desporto.) Não gosto de música clássica por ela ser alvo de um culto - não sou um snobe ao contrário. Não gosto ( ou pelo menos não me empolga), porque parece pomposa, porque, pelo menos para os meus ouvidos, não consegue lidar com os sentimentos ínfimos que fazem parte de um dia, de uma semana e uma vida, porque não há coros, ou temas tocados no baixo, ou solos de guitarra, e porque há muita gente a fingir que gosta dela, e na realidade não gosta de música nenhuma (ou de nenhuma cultura), e porque cresci a ouvir coisas diferentes e ela não tem a capacidade de me emocionar, porque não tenho necessidade que a minha música soe «melhor» do que já soa - um grande solo de saxofone, daqueles super-rápidos, peidorrentos e de partir a loiça já basta para me encher as medidas. É por isso que Caravan há-de ser tocada no meu funeral.

O problema com a passagem longa a que me referi anteriormente, o trecho em que espero que os presentes pensem e reflictam é o... Bem, ok, então vou dizer-vos: é aquela passagem em que Van Mor­rison apresenta a banda. «Terry Adams no violoncelo... Nancy Ellis na viola... Bill Elwin no trompete... David Hayes no baixo...» Não é muito estranho? Será que as pessoas aguentam o meu funeral a ou­vir uma lista de nomes de pessoas que eles (e eu) não conhecemos? Agora comecei a pensar nesta passagem como uma espécie de dramatis personae metafórica: claro que não conheço o David Haynes ou a Nancy Ellis mas, sabem, talvez tenha conhecido alguém parecido com eles. É a melhor desculpa que me vem à cabeça neste mo­mento, e vai ter que ser assim mesmo, pois, já que não vou mudar a minha ideia, vão ter de se aguentar.

Nick Hornby, 31 Canções, Teorema, p. 125.

domingo, outubro 08, 2006

Leonard Cohen - Stranger Song

Leonard Cohen


Stranger Song

(from the album 'SONGS OF LEONARD COHEN')


It's true that all the men you knew were dealers
who said they were through with dealing
Every time you gave them shelter
I know that kind of man
It's hard to hold the hand of anyone
who is reaching for the sky just to surrender
who is reaching for the sky just to surrender.

And then sweeping up the jokers that he left behind
you find he did not leave you very much not even laughter
Like any dealer he was watching for the card
that is so high and wild
he'll never need to deal another
He was just some Joseph looking for a manger
He was just some Joseph looking for a manger.

And then leaning on your window sill
he'll say one day you caused his will
to weaken with your love and warmth and shelter
And then taking from his wallet
an old schedule of trains, he'll say
I told you when I came I was a stranger
I told you when I came I was a stranger.

But now another stranger seems
to want you to ignore his dreams
as though they were the burden of some other
O you've seen that man before
his golden arm dispatching cards
but now it's rusted from the elbows to the finger
And he wants to trade the game he plays for shelter
Yes he wants to trade the game he knows for shelter.

Ah you hate to see another tired man
lay down his hand
like he was giving up the holy game of poker
And while he talks his dreams to sleep
you notice there's a highway
that is curling up like smoke above his shoulder
It is curling just like smoke above his shoulder.

You tell him to come in sit down
but something makes you turn around
The door is open you can't close your shelter
You try the handle of the road
It opens do not be afraid
It's you my love, you who are the stranger
It's you my love, you who are the stranger.

Well, I've been waiting, I was sure
we'd meet between the trains we're waiting for
I think it's time to board another
Please understand, I never had a secret chart
to get me to the heart of this
or any other matter
When he talks like this
you don't know what he's after
When he speaks like this,
you don't know what he's after.

Let's meet tomorrow if you choose
upon the shore, beneath the bridge
that they are building on some endless river
Then he leaves the platform
for the sleeping car that's warm
You realize, he's only advertising one more shelter
And it comes to you, he never was a stranger
And you say ok the bridge or someplace later.

And then sweeping up the jokers that he left behind ...

And leaning on your window sill ...

I told you when I came I was a stranger.

domingo, setembro 03, 2006

Cavafy


ÍTACA

Quando partires de regresso a Ítaca,

deves orar por uma viagem longa,

plena de aventuras e de experiências. Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,

um Poseidon irado - não os temas,

jamais encontrarás tais coisas no caminho,

se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime teu corpo toca e o espírito te habita.

Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros, Poseidon em fúria - nunca encontrarás,

se não é na tua alma que os transportes,

ou ela os não erguer perante ti.


Deves orar por uma viagem longa.

Que sejam muitas as manhãs de Verão,

quando, com que prazer, com que deleite, entrares em portos jamais antes vistos!

Em colónias fenícias deverás deter-te para comprar mercadorias raras:

coral e madrepérola, âmbar e marfim,

e perfumes subtis de toda a espécie:

compra desses perfumes quanto possas.

E vai ver as cidades do Egipto,

para aprenderes com os que sabem muito.


Terás sempre Ítaca no teu espírito,

que lá chegar é o teu destino último.

Mas não te apresses nunca na viagem.

É melhor que ela dure muitos anos,

que sejas velho já ao ancorar na ilha,

rico do que foi teu pelo caminho,

e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.


Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.

Sem Ítaca, não terias partido.

Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.

Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,

Terás compreendido o sentido de Ítaca.


Constantino Cavafy, 90 E MAIS QUATRO POEMAS, Edições ASA, Tradução de Jorge de Sena, p. 44.

terça-feira, agosto 29, 2006

Tom Wolfe


John Carter nomeou Noyce director-geral de toda a divisão, a Fairchild Semiconductor, que se tornara subitamente um dos novos empreendimentos mais falados do mundo empresarial. A NASA escolheu os circuitos integrados de Noyce para os primeiros computadores que os astronautas utilizariam a bordo das suas naves (no programa Gemini). Depois disso, começaram a chover as encomendas. Em dez anos, as vendas da Fairchild aumentaram de uns poucos milhares de dólares por ano para 130 milhões e o número de empre­gados cresceu do primitivo grupo de duendes para doze mil. Como director­-geral, Noyce teria agora de se haver com uma questão que Shockley abordara prematura e desajeitadamente, a saber, a de novas técnicas de gestão para esta nova indústria.

Um dia John Carter veio a Mountain View para ver de perto a empresa de semicondutores de Noyce. O escritório de Carter em Syosset, Long Island, pôs-lhe uma limusina com condutor às ordens durante a sua estadia na Califórnia. Por conseguinte, John Carter chegou ao barracão de cimento tilt-up de Mountain View no banco de trás de uma limusina Cadillac preta com um condutor à frente envergando uma farda de motorista completa: fato preto, camisa branca, laço preto e boné preto. Isso só por si bastou para fazer voltar cabeças na Fairchild Semiconductor. Nunca ninguém tinha ali visto uma limusina e um motorista. Não foi isso, porém, que gravou o dia na memória de todos. Foi o facto de o motorista ficar lá fora durante quase oito horas, sem fazer nada. Ficou lá fora com a sua farda, com o seu boné posto, no assento da frente da limusina, sem fazer nada a não ser esperar por um homem que estava algures lá dentro. John Carter estava lá dentro a divertir-se à grande como director executivo. Visitou as instalações, fez reuniões, examinou números, assentiu de satisfação e irradiou o seu urbano encanto de Director Executivo Prodígio da Rua Cinquenta e Sete. E o motorista passou todo o dia sentado lá fora em­brenhado na tarefa de suportar um boné com a cabeça. As pessoas começaram a abandonar as bancadas de trabalho e a assomar às janelas da frente só para darem uma vista de olhos àquele fenómeno, tão insólito ele se afigurava. Eis ali um servo que não fazia nada o dia inteiro a não ser esperar à porta a fim de estar imediatamente às ordens dos quadris do seu amo, quando quer que aque­les quadris, a pança e a queixada decidissem reaparecer. Não era simplesmente o facto de aquela pequena espreitadela à alta-roda do meio empresarial ao jeito de Nova lorque ser incomum naquelas colinas castanhas de Santa Clara Valley. É que aquilo parecia terrivelmente mal.

Um certo instinto que Noyce tinha relativamente a esta nova indústria e às pessoas que nela trabalhavam principiou a assumir os contornos de um conceito. As empresas do Leste adoptaram uma filosofia feudal da organização, sem sequer se aperceberem. Havia reis e nobres, como havia vassalos, solda­dos, alabardeiros e servos, com camadas de protocolo e mordomias, tal como o automóvel e o motorista, para simbolizarem superioridade e estabelecerem as linhas de demarcação. Lá no Leste os directores executivos tinham gabinetes forrados a madeira trabalhada, lareiras falsas, escrivaninhas, bergères, livros encadernados a pele e quartos de vestir, como uma suite num solar baronil. A Fairchild Semiconductor precisava de uma estrutura operacional rígida, particularmente neste período de rápido crescimento, mas não precisava de uma estrutura social. Aliás, não poderia haver coisa pior. Noyce apercebeu-se de como detestava o sistema empresarial do Leste de classe e posição, com as suas intermináveis gradações, encimadas pelos directores executivos e vice-presidentes que organizavam a sua vida diária como se fossem uma corte e uma aristo­cracia empresariais. Rejeitava a ideia de uma hierarquia social na Fairchild.

Para além de não ir haver limusinas e motoristas, nem sequer haveria luga­res de estacionamento reservados. O trabalho iniciava-se às 8 da manhã para todos sem excepção e o regime de prioridade para quem chegasse primeiro ao parque de estacionamento aplicar-se-ia a Noyce, Gordon Moore, Jean Hoerni e todos os restantes. «Se chegarem tarde», gostava de dizer Noyce, «terão que estacionar lá para os quintais». E não ia haver gabinetes tipo suite baronil. O armazém embelezado da Charleston Road estava dividido em comparti­mentos de trabalho e umas quantas fiadas de atravancados gabinetes-cubículo. Os cubículos nunca eram beneficiados. A decoração mantinha-se Armazém Embelezado e as portas estavam sempre abertas. Noyce, o administrador prin­cipal, passava metade do tempo no laboratório fosse como fosse, envergando a sua bata branca. Noyce ia para o trabalho de casaco e gravata, mas não tar­dava a despir o casaco e tirar a gravata, e isso era bem aceite a qualquer outra pessoa da empresa. Não existiam quaisquer regras em termos de vestuário, a não ser algumas tácitas. A indumentária devia ser recatada, tanto no sentido social como no sentido moral. Na Fairchild não havia fatos de trespasse às listas e gravatas de xadrez preto e branco. Vestir bem, com elegância, à moda ou de modo a chamar a atenção era um deslize social. Andar mal vestido não era um pecado. A ostentação, sim.

(...)

Para onde quer que fossem, os emigrados da Fairchild levavam consigo a abordagem de Noyce. Não bastava fundar uma empresa; tinha de se criar uma comunidade, uma comunidade na qual não houvesse distinções sociais, a polí­tica era a da prioridade a quem chegasse mais cedo ao parque de estaciona­mento e esperava-se que toda a gente interiorizasse os objectivos comuns.

A atmosfera das novas empresas era tão democrática, que sobressaltava os empresários do Leste. Um prodígio qualquer de cinquenta e cinco anos com a papada a sobressair levemente do colarinho branco F. R. Tipler de largura modificada e gravata de seda de padrão de tear telefonava da GE ou da RCA a dizer: «Daqui fala Harold B. Thatchwaite,» e a secretária de vinte e três anos do outro lado da linha, em Silicon Valley, dizia com uma daquelas vozes loiras do sol e de olhos azul-claro da Califórnia: «É só um momento, Hal, o Jack já o atende.» E, mal ele chegava à Califórnia e se encontrava pela primeira vez com Jack, ei-lo ali, o director executivo em pessoa, com os seus trinta e três anos de idade, sem casaco, sem gravata, apenas com um camisa de xadrez, calças de caqui e um par de mocassins de costuras reviradas do tamanho de cabos de bateria. Evidentemente, os primeiros sons que saíam da boca de Jack eram: «Viva, Hal.»

Estava-se na década de 1960 e as pessoas do Leste ouviam falar imenso dos praticantes de surf da Califórnia, dos ciclistas, dos proprietários de carros mo­dificados e proprietários de carros personalizados da Califórnia, dos hippies e dos manifestantes políticos da Califórnia, e a imagem que tinham era de jovens de jeans e T-shirts que eram descontraídos, espontâneos, impulsivos, emotivos, sensuais, indisciplinados e irritantemente orgulhosos disso. Por conseguinte, estas empresas de semicondutores de Silicon Valley, com os seus directores executivos vestidos como supervisores de acampamento, davam-lhes a ideia de serem as versões empresariais da mesma coisa.

Não podiam estar mais enganados. A nova raça de Silicon Valley vivia para o trabalho. Eram disciplinados ao ponto de ter espasmos nas costas. Trabalha­vam horas a fio e continuavam a trabalhar no fim-de-semana. Deixavam-se empolgar com as suas empresas como dantes acontecera às pessoas nos dias florescentes da indústria automóvel. Em Silicon Valley um jovem engenheiro ia para o trabalho às oito da manhã, trabalhava mesmo durante a hora do almoço, saía da fábrica às seis e meia ou sete, voltava para casa, brincava meia hora com o bebé, jantava com a mulher, ia para a cama com ela, dava-lhe uma penachada rápida e a seguir levantava-se, deixava-a ali às escuras e punha-se a trabalhar à secretária durante duas ou três horas numas «coisitas que tive de trazer para casa».

Também podia sair da fábrica e resolver ir tomar um copo ao Wagon Wheel antes de ir para casa. Todos os anos havia um sítio - o Wagon Wheel, o Chez Yvonne, o Rickey's, o Roundhouse -, onde os elementos daquela esotérica confraria, os jovens de ambos os sexos da indústria dos semicondutores, se dirigiam depois do trabalho para beberem um copo, mexericarem, bazofiarem e trocarem histórias profissionais acerca de flutuações de fase, circuitos-fan­tasma, memórias de bolha, sequências de fase, contactos antichoque, burst modes, comprovações selectivas por saltos, junções p-n, modos de doença do sono, episódios de morte lenta, RAMs, NAKs, MOSes, PCMs, programadores de PROMs e teramagnitudes, o que queria dizer múltiplos de um milhão de milhões. Por conseguinte não chegava a casa antes das nove, o bebé já estava a dormir, o jantar estava frio e a mulher gélida e ele ficava para ali especado com as mãos em concha como se estivesse a fazer uma bola de neve imaginária e tentava explicar-lhe tudo... enquanto o seu espírito enveredava por outros temas, LSIs, VLSIs, fluxo alfa, de-resolução, polarizações directas, sinais para­sitas e aquela sujeitinha terasexy da Signetics que tinha conhecido no Wagon Wheel, que entendia essas coisas.

Não era grande modo de vida para os casamentos. Nos finais dos anos 1960 a taxa de divórcios parecia tão elevada à gente do ramo como a das cida­des de crescimento-relâmpago da NASA, Cocoa Beach, na Florida, e Clear Lake, no Texas, onde outros jovens engenheiros se entregavam a uma nova tecnologia como se fosse uma missão religiosa. Da segunda vez tinham ten­dência para os «intramatrimónios». Casavam com mulheres que trabalhavam em empresas de Silicon Valley e que haviam de compreender e até aprender a viver com as suas obsessões de vinte e quatro horas. Em Silicon Valley um engenheiro estava sob pressão para reinventar o circuito integrado de seis em seis meses. Em 1959 o invento de Noyce tinha possibilitado a colocação de todo um circuito eléctrico num chip de silício do tamanho de uma unha. Em 1964 tinha de se saber como colocar dez circuitos num chip desse tamanho só para entrar no jogo, e a parada estava continuamente a subir. Daí a seis anos o número era de um milhar de circuitos num único chip; daí a outros seis se­riam trinta e dois mil... e toda a gente dizia que a verdadeira lança em África seriam sessenta e quatro mil.

Tom Wolfe, Hooking Up, Um Mundo Americano, Publicações Dom Quixote (2001), p. 40 (tradução de J. Teixeira de Aguilar)

segunda-feira, agosto 28, 2006

segunda-feira, julho 24, 2006

Michel Houellebecq


Solidão a dois é o inferno consentido. Na vida do casal, na maior parte das vezes, existem desde o início certos pormenores, certas discordâncias sobre as quais as pessoas decidem calar-se, na entusiástica certeza de que o amor acabará por resolver todos os problemas. Estes pro­blemas crescem aos poucos, em silêncio, antes de explodirem, alguns anos mais tarde, e de destruírem toda a possibilidade de vida comum. Desde o início, Isabelle preferira ser possuída por trás; sempre que eu tentava outra abordagem, ela começava por aceitar, mas depois voltava-se, quase involuntariamente, num tre­jeito de riso embaraçado. Ao longo dos anos, eu atribuíra esta pre­ferência a uma particularidade anatómica, uma inclinação da vagi­na ou fosse o que fosse, enfim, uma dessas coisas de que os homens não podem, não obstante a melhor das vontades, tomar exactactamente consciência. Seis semanas depois da nossa chegada, estáva­mos nós a fazer amor (eu penetrava-a, como habitualmente, por trás, mas havia um grande espelho no nosso quarto), apercebi-me de que, ao aproximar-se do orgasmo, Isabelle fechava os olhos, e só os abria muito tempo depois, uma vez terminado o acto.

Pensei no caso durante toda a noite, enquanto ingeria duas gar­rafas de um brandy espanhol razoavelmente infecto: revi os nossos actos de amor, as cenas de ternura, todos os momentos que nos haviam unido: ela desviava sempre o olhar, ou fechava os olhos, e comecei a chorar. Isabelle deixava-se fruir, fazia-me fruir, mas não gostava da fruição, não gostava dos sinais da fruição; não gosta deles em mim, e com certeza ainda menos nela própria. Tudo concordava: sempre que a vira deliciar-se diante da expressão da beleza plástica fora por causa de pintores como Rafael, e sobretudo Botticelli: por vezes emocionada, mas frequentemente fria, sempre muito calma; ela nunca compreendera a admiração absoluta que eu votava a Greco, nunca apreciara o êxtase, e eu chorei muito porque esta faceta animal, esta entrega ilimitada ao prazer e ao êxtase era o que eu desejava para mim mesmo, enquanto votava desprezo à minha inteligência, à minha sagacidade, ao meu humor. Nunca conheceríamos o olhar baço, infinitamente misterioso, do casal unido na felicidade, aceitando humildemente a presença dos órgãos, e a felicidade mitigada; nunca seríamos verdadeiros amantes.

Michel Houellebecq, A Possibilidade de Uma Ilha, Dom Quixote, p. 61 (tradução de Isabel St. Aubyn)

sexta-feira, julho 21, 2006

Barry Guifford



A História de Reader

- Alguma vez viste aquele filme do Errol Flynn, Objectivo Burma? - perguntou Sailor.

Lula estava sentada numa cadeira a pintar as unhas dos pés.

- Que me lembre, não - respondeu.

- Durante a Segunda Guerra Mundial - disse Sai­lor. - Flynn e um grupo de soldados tão a preparar-se para saltar de pára-quedas em plena selva, perto de Man­dalay ou coisa parecida e um dos tipos pergunta a Flynn: «e se o meu pára-quedas não abrir?» E o Flynn responde: «Bem, nesse caso, és o primeiro a chegar ao chão».

Lula deu uma gargalhada. - Ele era muito giro ­disse ela -, apesar de ter bigode! Nunca fui ligada em barbas e bigodes, a não ser que um tipo seja tão feio que a barba sirva p'ra lhe tapar a cara toda.

Sailor levantou-se da cama e começou a vestir-se.

- Vamos comer qualquer coisa, amendoim - disse. - Tou pronto.

- Primeiro, as unhas têm de secar, Sailor. Conta­-me uma história enquanto esperamos.

- Que tipo de história, querida?

- Qualquer coisa que tu contes me interessa - res­pondeu Lula. - Tu sabes.

- Tu, realmente, és tão gira que és um perigo, querida - disse Sailor. - Tenho de o admitir.

Lula deu uma risadinha e estendeu-se na cama, dei­xando os pés pendurados para fora.

Sailor sentou-se numa cadeira ao pé da janela. Via nitidamente as ondas de calor a espraiarem-se pela rua abaixo.

- Lá em Pee Dee conheci um gajo chamado Rea­der O'Day - disse ele. - O gajo foi dentro, porque apagou a tipa com quem vivia. Apanhou dezassete anos por homicídio de 2º grau.

- Que raio de nome é esse? Reader? [1]- pergun­tou Lula.

- Puseram-lhe esta alcunha porque lê à brava. Que me lembre, nunca cheguei a saber qual era o seu nome de baptismo. Tá sempre a ler livros que a família lhe manda. Ele andou na Universidade. E agora, com qua­renta e sete anos, ainda lê livros.

- É espantoso - disse Lula. - Quer dizer, deve ser muito raro num criminoso.

- Durante muito tempo andou a ler livros dum gajo francês que já morreu. Disse-me que todos os livros daquele gajo eram partes dum mesmo livro, chamado Rememberin'Things Past.[2] Parece-me que era este o título. O que é giro, é que segundo o Reader, o autor teve a ideia p'ra escrever aquilo tudo, quando tava a comer um biscoito.

- Um biscoito?

- Pois. O tal francês tava a comer um biscoito e uma porrada de lembranças inundou-lhe o cérebro e então ele escreveu-as. O Reader contou-me que ele tava bas­tante doente e que esteve sempre a escrever até morrer, mesmo até ao último momento.

- Porque é que o Reader aviou a patroa? - per­guntou ela.

Sailor abanou a cabeça e soltou um assobio baixi­nho, por entre os dentes.

- Isso é uma história do caraças - disse ele. ­

Parece que tinham uma filha que não se dava bem com a mãe e o Reader foi aguentando a mulher por causa da miúda. Dizia ele que a gaja era muito chata com a filha e com ele também. Contou-me que uma vez ela o atacou com um ferro de engomar que tava muito quente e dou­tra vez, com uma moto-serra.

- Parece um daqueles filmes que eu nem vou ver - disse Lula.

- O Reader achou que devia ficar com ela para pro­teger a filha. Durante algum tempo viveram perto de Mor­gan City e ele trabalhou nos campos de petróleo. Quando o negócio do petróleo ficou de pantanas, mudou-se para o Piedmont e trabalhou no tabaco. A gaja trabalhava de vez em quando, como servente de hospital. O Reader dizia que ela era do piorio em Alabama e que ele se tinha juntado com ela numa altura em que andava também um bocado por baixo. No entanto, depois da filha nascer, ele resolveu mudar de vida.

- Ele devia ser de boas famílias? - perguntou Lula. - Afinal de contas, andou na Universidade.

- Parece-me que ele disse que o pai era médico - disse Sailor. - O mais certo era ele ser um desapon­tamento p'rá família, andando por aí, nos campos do petróleo e fazendo trabalhos que qualquer borra-botas pode fazer. Seja como for, a patroa continuou a cha­teá-lo p'ra ele casar com ela, p'rá filha ficar legítima. O Reader não queria ficar amarrado à gaja e disse-lhe que só tava com ela por causa da miúda. Acho que durante uns tempos as coisas tiveram assim, ela a moer-lhe o juízo p'ra se casarem e ele a recusar. Um dia, quando a filha, que nessa altura tinha dez anos, tava na escola ou noutro sítio qualquer, a gaja veio ter com ele com uma espingarda e ameaçou que o matava se ele não casasse com ela. Quando ele a mandou bugiar, ela disparou e quase que lhe acertou. Ele diz que a bala passou a rasar a ore­lha esquerda e se foi enfiar na parede por trás dele. Então ele tirou-lhe a espingarda e perdeu a cabeça.

- Não me digas que disparou contra ela?! - disse Lula.

- Cinco ou seis vezes - respondeu Sailor. – Acho que ele tava tão furioso que ficou ali, a olhar p'ra ela e a disparar até já não ter balas. E foi então que ele fez uma grande asneira.

- Como se enfiar meia-dúzia de balázios na dama não fosse já asneira suficiente - disse Lula.

- Em vez de chamar a polícia e alegar legítima defesa ou homicídio justificável por ter sido levado até à loucura - continuou Sailor -, embrulhou o corpo na cortina do chuveiro e enterrou-o debaixo da casa.

- O que é que ele disse à filha?

- Disse-lhe que a mãe tinha ido de férias, ou qual­quer coisa no género. Deixou a miúda com uns parentes e desandou. Foi p'ra Nova Yorque, Chicago, Las Vegas, p'ra todo o lado. Foi apanhado quando resolveu voltar, p'ra ver a filha.

- Como é que a polícia deu com o corpo?

- Isso é que é o melhor - disse Sailor. – Nunca deu com ele! Pelo menos até o Reader lhes dizer onde é que o tinha enterrado. Eles avançaram com o caso e processaram-no, unicamente com base em provas circuns­tanciais. A meio do julgamento, quando o Reader pen­sava que aquilo ia ser canja, intimaram a mãe dele a depor como testemunha e quando ela recusou, engavetaram-na. Ela era uma velhota doente e não aguentou mais duma semana. Quando a soltaram, admitiu que o filho já tinha dito antes que havia de matar a mulher. O Reader, quando depôs, contou que a mulher, com quem vivia, o atacara primeiro e que tinha sido ferida acidentalmente, quando tinham lutado pela posse da arma. Disse-lhes onde é que o corpo estava enterrado e quando o desenterraram des­cobriram que tava cheio de buracos à queima-roupa. Esta descoberta e o facto de ele se ter posto a andar, não lhe fizeram bem nenhum. O júri já tava com pouca vontade de alinhar com a história dele. Ele disse-me que a maio­ria dos membros do júri eram mulheres e que, quando ele disse em tribunal que ela ficava danada sempre que levava porrada, quase que o linchavam ali mesmo. Acho que o Reader deve ter sido o tipo mais porreiro que conheci em Pee Dee. As tuas unhas já secaram, amendoim?



[1] Leitor – N.T.

[2] Referência a Em busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust – N.T.


Barry Gifford, Coração Selvagem (Wild at Heat), Quetzal, p. 139.