segunda-feira, julho 24, 2006

Michel Houellebecq


Solidão a dois é o inferno consentido. Na vida do casal, na maior parte das vezes, existem desde o início certos pormenores, certas discordâncias sobre as quais as pessoas decidem calar-se, na entusiástica certeza de que o amor acabará por resolver todos os problemas. Estes pro­blemas crescem aos poucos, em silêncio, antes de explodirem, alguns anos mais tarde, e de destruírem toda a possibilidade de vida comum. Desde o início, Isabelle preferira ser possuída por trás; sempre que eu tentava outra abordagem, ela começava por aceitar, mas depois voltava-se, quase involuntariamente, num tre­jeito de riso embaraçado. Ao longo dos anos, eu atribuíra esta pre­ferência a uma particularidade anatómica, uma inclinação da vagi­na ou fosse o que fosse, enfim, uma dessas coisas de que os homens não podem, não obstante a melhor das vontades, tomar exactactamente consciência. Seis semanas depois da nossa chegada, estáva­mos nós a fazer amor (eu penetrava-a, como habitualmente, por trás, mas havia um grande espelho no nosso quarto), apercebi-me de que, ao aproximar-se do orgasmo, Isabelle fechava os olhos, e só os abria muito tempo depois, uma vez terminado o acto.

Pensei no caso durante toda a noite, enquanto ingeria duas gar­rafas de um brandy espanhol razoavelmente infecto: revi os nossos actos de amor, as cenas de ternura, todos os momentos que nos haviam unido: ela desviava sempre o olhar, ou fechava os olhos, e comecei a chorar. Isabelle deixava-se fruir, fazia-me fruir, mas não gostava da fruição, não gostava dos sinais da fruição; não gosta deles em mim, e com certeza ainda menos nela própria. Tudo concordava: sempre que a vira deliciar-se diante da expressão da beleza plástica fora por causa de pintores como Rafael, e sobretudo Botticelli: por vezes emocionada, mas frequentemente fria, sempre muito calma; ela nunca compreendera a admiração absoluta que eu votava a Greco, nunca apreciara o êxtase, e eu chorei muito porque esta faceta animal, esta entrega ilimitada ao prazer e ao êxtase era o que eu desejava para mim mesmo, enquanto votava desprezo à minha inteligência, à minha sagacidade, ao meu humor. Nunca conheceríamos o olhar baço, infinitamente misterioso, do casal unido na felicidade, aceitando humildemente a presença dos órgãos, e a felicidade mitigada; nunca seríamos verdadeiros amantes.

Michel Houellebecq, A Possibilidade de Uma Ilha, Dom Quixote, p. 61 (tradução de Isabel St. Aubyn)

Sem comentários: