quarta-feira, setembro 05, 2007

Vila-Matas



Hoje é 17 de Julho, são duas da tarde, oiço música de Chet Baker, o meu intérprete preferido. Há pouco, enquanto me barbeava, olhei-me ao espelho e não me reconheci. A radi­cal solidão destes últimos dias está a transformar-me num ser diferente. Seja como for, sinto-me bem com a minha anoma­lia, o meu afastamento, a minha monstruosidade de indivíduo isolado. Encontro certo prazer em ser arisco, em burlar a vida, em adoptar posturas de herói radical e negativo da literatura (isto é, em ser como os protagonistas destas notas sem texto), em observar a vida e ver que, coitada, não tem vida própria.

Olhei-me ao espelho e não me reconheci. Depois, pen­sei naquilo que dizia Baudelaire: que o verdadeiro herói é o que se diverte sozinho. Voltei a olhar-me ao espelho e detec­tei em mim algumas parecenças a Watt, aquele solitário per­sonagem de Samuel Beckett. Tal como Watt, eu poderia ser descrito da seguinte forma: um autocarro pára à frente de três velhos repugnantes que o observam sentados num banco público. O autocarro arranca. «Olha (diz um deles), deixa­ram um monte de trapos.» «Não (diz o segundo), é um balde de lixo.» «Não, (diz o terceiro), é um maço de jornais velhos que alguém atirou para ali.» Nesse momento o monte de restos avança para eles e pede para se sentar no banco com enorme grosseria. É Watt.

Não sei se fica bem escrever transformado num monte de restos. Não sei. Tenho muitas dúvidas. Talvez devesse acabar com o meu excessivo isolamento. Falar pelo menos com Juan, telefonar para sua casa e pedir-lhe que me volte a repetir aquilo de que não há nada depois de Musil. Tenho muitas dúvidas. A única certeza que agora tenho é que devo mudar de nome e passar a chamar-me CasiWatt. Mas não sei se tem muita importância dizer isto ou outra coisa. Dizer é inventar. Seja certo ou falso. Não inventamos nada, julgamos inventar quando de facto nos limitamos a balbu­ciar a lição, os restos de uns deveres escolares aprendidos e esquecidos, a vida sem lágrimas, tal como a choramos. E à merda.

Sou apenas uma voz escrita, sem vida privada nem pú­blica, sou uma voz que atira palavras que de fragmento em fragmento vão enunciando a longa história da sombra de Bartleby sobre as literaturas contemporâneas. Sou CasiWatt, sou mero fluxo discursivo. Nunca despertei paixões, e não vou despertá-las agora que já sou apenas uma voz. Sou Casi­Watt. Deixo-as dizer, às minhas palavras, que já não são mi­nhas, eu, essa palavra, essa palavra que elas dizem, mas que dizem em vão. Sou CasiWatt e na minha vida só houve três coisas: a impossibilidade de escrever, a possibilidade de o fazer, e a solidão, física desde logo, com a qual continuo. Oiço de repente alguém que me diz:

- CasiWatt, ouves-me?

- Quem está ai?

Por que não te esqueces da tua ruína e falas do caso de Joseph Joubert, por exemplo?

Olho e não há ninguém e digo ao fantasma que me ponho às suas ordens e depois rio-me e acabo por me diver­tir sozinho, como os verdadeiros heróis.


Enrique Vila-Matas, Bartleby & Companhia, Assírio & Alvim, p. 59 (tradução de José Agostinho Baptista)