segunda-feira, novembro 27, 2006

Mário Cesariny (1923 - 2006)



Autografia

I


Sou um homem

um poeta

uma máquina de passar vidro colorido

um copo uma pedra

uma pedra configurada

um avião que sobe levando-te nos seus braços

que atravessam agora o último glaciar da terra

o meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado à morte!

os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que existe nele uma árvore miraculada

tenho um pé que já deu a volta ao mundo

e a família na rua

um é loiro

outro é moreno

e nunca se encontrarão

conheço a tua voz como os meus dedos

(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)

tenho um sol sobre a pleura

e toda a água do mar à minha espera

quando amo imito o movimento das marés

e os assassínios mais vulgares do ano

sou, por fora de mim, a minha gabardine

e eu o pico do Everest

posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita

e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca

porque tu és o dia porque tu és

a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola

do rei morto, do vento e da primavera


Quanto ao de toda a gente - tenho visto qualquer coisa

Viagens a Paris - já se arranjaram algumas.

Enlaces e divórcios de ocasião – não foram poucos.

Conversas com meteoros internacionais - também já por cá passaram.

Eu sou no sentido mais enérgico da palavra

uma carruagem de propulsão por hálito

os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por

onde passei uma só vez

tudo isso vive em mim para uma só história

de sentido ainda oculto

magnífica irreal

como uma povoação abandonada aos lobos

lapidar e seca

como uma linha férrea ultrajada pelo tempo

é por isso que eu trago um certo peso extinto

nas costas

a servir de combustível

e é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir

a ser escrupulosamente electrocutadas vivas

para não termos de atirá-las semimortas à linha


E para dizer-te tudo

dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar

estou em franca ascensão para ti O Magnífico

na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos

e que o homem-expedição de que não há notícias nos

jornais nem lágrimas à porta das famílias

sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido

entre lagos de incêndio e o teu retrato grande!


II



E era uma vez este homem

que era um chrevrolet

casado com uma mulher de vidro

que era uma colher de prata.

Tempos depois sobreveio uma zanga

que era uma criança nua

entre umas tábuas de passar a ferro

e dois elevadores lindíssimos


Metrónomo (disseram eles)


Verdadeira saudade pernilonga

o pára-raios pôs-se a esfalfar romanticamente o toldo

de uma máquina de escrever disposta para o amor às

quatro no interior de um quarto

que era uma planície redonda semeada de vírgulas violeta

com um pequeno garfo nas costas

que era o amanhecer que é uma árvore

na. boca de uma mosca de ve1udo rosa


Metrónomo metrónomo (disseram eles ainda)

é uma árvore é uma pedra que vai começar o terceiro canto ?


É a aflição dos outros, meu amor.


Lembro-me de tudo como se fosse hoje

as crianças brincavam nos jardins

com um pequeno garfo nas costas

sem dúvida o mesmo de há bocado

e até era domingo tu

de repente apareceste muito devagar a meu lado

arrastando sem esforço dois aparadores baratíssimos

ai! a minha tristeza não era uma barca

breve houve lapidações em série

com um ligeiro clic de chaufagem aberta

todos os meus irmãos começaram a andar velozmente para trás

pobres dos meus irmãos que será feito deles e de nós que fizemos?

Impossível saber-se até onde irá connosco a nossa confiança


Ficaste, mão que aperto todas as manhãs para atravessar incólume os espaços vazios
Ficaste, peito sangrento do mundo largada para o sol entre os bichos e eu
tu meu único amor meu amor meu múltiplo amor meu
tu que és uma mesa redonda enamorada dos seus próprios círculos
um alcaide sem discos um maço de cigarros
que se descobriu flor
que se descobriu água
que se abriu de repente
que gritou de repente
que implantou na minha vida de repente a corola perfeita
da desorganização
Não me encontrarás como um anel na curvatura I - Z do teu dedo mindinho
nem na treva que exalta os teus cabelos
nem no espantoso hall da tua testa fechada iluminadíssima
encontrar-me-ás numa nuvem de escamas milimétricas em torno da tua boca

com toda a força principal na boca

ou nesta casa que é um homem morto

rodeado de rostos sempre translúcidos



- Onde está o homem que era um chevrolet
casado com uma vírgula de amianto?
Certo e sabido que anda sobre as águas que o matei sem querer

estas estrelas brilham com tal nitidez

que acabam sempre por tornar-se suspeitas


Não importa transfigurá-lo-ei em poderoso egípcio


Abracadabra! Vram! Abracadabra!


Os teus olhos estão belos como a lua dos rios exteriores



Mário Cesariny, burlescas, teóricas e sentimentais, Editorial Presença (1972), p. 105.

quinta-feira, novembro 23, 2006

A LUZ DE EDWARD HOPPER


A luz que banha os quadros do pintor americano Edward Hop­per é a luz mais triste do mundo. Alguém poderia escrever um tratado sobre as diferenças entre sociedades a partir da maneira como os seus pintores pintavam a luz, tentar explicar por que poucas coisas continuam sendo tão estranhamente americanas e evocativas como o Sol nas paisagens urbanas de Hopper e contras­tá-la com o Sol de Monet ou Renoir, ou até o Sol de Van Gogh, que era o Sol da loucura mas não era tão desesperado. Alguém, mas não eu.

Luís Fernando Veríssimo, Expresso de 18/11/2006 (Actual, p. 37)

domingo, novembro 12, 2006

Elis Regina

Saudade dela

sexta-feira, novembro 10, 2006

Roth (2)



Naquela primeira noite estivemos sentados no sofá a ouvir Dvorák. A certa altura, Consuela encontrou um livro que lhe interessava - não me lembro qual era, mas nunca esquecerei o momento. Ela virou-se - eu estava sentado onde tu estás, no can­to do sofá, e ela estava sentada ali -, deu meia volta ao tronco e, com o livro posto no braço do sofá, começou a ler e, como esta­va inclinada para a frente, vi-lhe as nádegas sob o vestuário, vi claramente a sua forma e isso foi um tremendo convite. Ela é uma jovem mulher alta num corpo ligeiramente estreito de mais. É como se o corpo estivesse um nadinha desajustado. Não por ela ser demasiado gorda. Mas também não é, de modo algum, do tipo anoréctico. Vê-se nele carne feminina, e é carne boa, abun­dante - é por isso que a vemos. Ela ali estava, pois, não aberta­mente atravessada no sofá, mas, mesmo assim, com as nádegas a modo que meio viradas para mim. Uma mulher tão consciente do seu corpo como Consuela e a fazer aquilo, concluí, convi­dando-me para começar. O instinto sexual ainda está intacto - ­nenhuma da correcção cubana interferiu. Vejo, naquele rabo meio virado, que nada se atravessou no caminho da coisa pura. Nada daquilo de que faláramos, nada do que eu escutara a res­peito da sua família, nada interferira. Ela sabe como virar o rabo, apesar de tudo isso. Vira-o do modo primordial. Exibindo-o. E a exibição é perfeita. Diz-me que não preciso mais de reprimir o desejo de lhe tocar.

Comecei a acariciar-lhe as nádegas e ela gostou.

- Isto é uma situação estranha - disse. - Nunca poderei ser tua namorada. Por todas as razões possíveis. Vives num mundo diferente.

- Diferente? - Ri-me. - Diferente como? - E, claro, neste ponto preciso começamos a mentir e dizemos: - Não é um lugar assim tão imponente, se é isso que estás a imaginar. Não é um mundo assim tão glamoroso. Nem sequer é um mundo. Apareço na televisão uma vez por semana. Uma vez por semana falo na rádio. Com intervalos de algumas semanas apareço na imprensa escrita, nas páginas de trás de uma revista lida por vinte pessoas, no máximo. O meu programa? É um programa cultural das manhãs de domingo. Ninguém o vê. Não é um mundo assim tão especial que possa causar preocupação. Posso levar-te para esse mundo com facilidade. Por favor, fica comigo.

Ela parece estar a pensar no que eu disse, mas que espécie de pensamento poderá ser?

- Está bem - diz -, por agora. Por esta noite. Mas nunca pode­rei ser tua mulher.

- Combinado - respondi, mas pensei:

Quem te pediu que fosses minha mulher? Quem levantou essa questão? Eu tenho sessenta e dois anos e ela tem vinte e quatro. Mal lhe toquei no rabo e já diz que não pode ser minha mulher? Não sabia que continuavam a existir raparigas assim. Ainda é mais tradicional do que eu imaginava. Ou talvez mais estranha, mais invulgar do que imaginava. Como viria a desco­brir, Consuela é uma mulher comum, mas sem ser previsível. Não há nada de maquinal no seu comportamento. É ao mesmo tempo específica e misteriosa, e estranhamente cheia de peque­nas surpresas. Mas, sobretudo no princípio, foi-me difícil decifrá-la e, erradamente - ou talvez não, atribuí isso à sua cubanidade.

Philip Roth, O Animal Moribundo, Dom Quixote, 2006, p. 29 (tradução de Fernanda Pinto Rodrigues)

terça-feira, novembro 07, 2006

Merz - Verily

Ramón Gómez de la Serna


O Cadáver Sábio

Penso às vezes num cadáver que uma certa tarde estudei sozinho na sala de dissecção da Faculdade.

Ah, como teriam sido uns sábios aqueles barbeiros que frequentavam na Faculdade um curso de anatomia e cirurgia, se pudessem ter estudado muitos cadáveres como aquele que perfurei e estudei dois dias a fio!

Nesse cadáver, foram muitas as coisas que se tornaram claras, parecendo que ele ajudava a resolver as dificuldades que eu nele ia estudando. Foi ao dissecar aquele cadáver que pude compreender muitas das coisas de que depois me servi em muitos dos meus tratamentos.

Não encontro teoria capaz de explicar como pôde ser tão clarividente aquele morto; mas a verdade é que de dentro da sua morte agia como um mestre. Várias vezes, aberto como o tinha e já sem coração, fitei-lhe o rosto para ver se ele sorria ao ver como eu acertava em muitas coisas que até então não tinha podido resolver; mas no seu rosto havia apenas sereni­dade e uma espécie de pacífica suficiência. Muito respeitosa­mente e com o cuidado com que se colocam as pinças no açucareiro, assim lhe aplicava as minhas pinças no peito.

Não poderei esquecer aquele cadáver, um cadáver como nunca vi outro. Com os preparados que fiz com os seus tecidos e os seus micróbios, pude resolver vários casos difíceis, isolei alguns novos micróbios.

Não é isso porém o mais importante.

O importante é que ele estava cheio de associações de ideias.

Se tivesse podido durar mais dois dias sem se decompor, teria até descoberto a cura para o cancro.

Admirável cadáver!

Ramón Gómez de la Serna, O médico inverosímil, Antígona, p. 226 (tradução de Júlio Henriques)