quarta-feira, dezembro 27, 2006

domingo, dezembro 17, 2006

José Bento


Se o não saber teu nome é adormecer-te

na véspera da minha morte no meu peito

pra que a manhã, acordando no meu leito,

me encontre rígido e frio por conter-te,


dá-me o silêncio terreno mais perfeito:

esse é o rosto com que anseio conhecer-te.

Qualquer palavra seria o amanhecer-te,

roubando à noite o teu perfil desfeito.


Teu nome é claridade em que te ocultas,

madrugada com que iluminas minha boca:

nupcial é o azul do dia em que te avultas.


Afogando-me em teu sangue me destruo:

singro nas veias da fonte que provoca

a solidão que de teus olhos eu construo.



José Bento, Silabário, Relógio D'Água, 1992, p. 231

sábado, dezembro 16, 2006

Álvaro Cunqueiro


Não falo dos vinhos galegos só por falar; respeito o seu sa­cramento, e apesar de não estudar teologia, sinto-me à vontade na disputa dos seus sais, humores e sabor com a autoridade do escanção. Não venho armado de vasilha para provar mostos, mas posso ser retratado com a cunca do meu apelido na mão, onde brilha um ribeiro ou faz espuma um palhete do Rosal. Bebi lado a lado com a melhor gente do meu país, e esta é a escola da minha loa e memória dos vinhos galegos, que são, tal como nós somos, humildes e mansos, honestos, suaves e indolentes.

O Minho comanda a física e a metafísica da Galiza com a veia larga e verde das suas águas escuras. Na província de Lugo, a sua capital Chantada começa a beber vinho da ribeira e vinhos de Lemos. Os brancos são de maçãs reinetas e os tintos da clara violeta, alegres, soltos e pobres. Eu gosto destes pequenos tintos. Quando o Minho menos o espera, chega, corredor, com lenda de ouro, como um indiano, o Sil, leonês de origem. Que vinhos ele traz! Começou em Ponferrada e no Bierzo com uns vinhos agudos, temperados e ruidosos, com o seu acrezinho e a sua espuma murmuradora, e chegou ao Barco com os Valdeor­ras sérios, cabais. Não gosto muito do branco de Valdeorras; falta-lhe qualquer coisa que a língua não sabe o que é; mas o tinto de Valdeorras é um vinho grave, amplo, com a medida da boca quando se come com força, e entre peito e costas, quando com ele acalmamos a sede, com a paz e a doçura com que uma mão amiga se apoia no nosso ombro. Quase sem nos mover­mos, vamos do Barco à Rua Petin, ao Bibey e ao Quiroga. São os vinhos do Sil. Se na Galiza tivesse havido no século XVIII um marquês de Pombal, teríamos uma real Companhia dos Vinhos do Sil. Os ingleses gostavam deles, e levaram-nos juntamente com as suas aguardentes, durante duzentos anos. Os vinhos de Rua são como os de Valdeorras, embora um pouco menos graves. Por aquelas terras manda o Amandi, que, dizem, o imperador Augusto saboreou. Eu, aquando do bimilenário, bebi um pouco, para estar à altura da paz romana. O vinhos quiroguenses são planos e combatem de uma para a outra margem do Sil. Vinhos beneditinos, os monges de Ribas de Sil trouxeram-nos da doce França para sofrerem o orvalho galego. Ficaram muito bem; cálidos, gordinhos, vivazes. E a sua aguardente é o melhor que existe na Galiza para essa fantasia que os Taboada de Tor inventaram e que se chama «licor de café»…

Aqui, de Rua até Trives, sobe a mais lavrada montanha da Terra. Já o padre Sarmiento ficou pasmado e disse que aquelas vinhas magistrais eram a nona maravilha do Mundo. À base de muros e contenções, o galego fez um berço da terra dos desmontados e fundações, e em sulcos de pedra e terra plantou vinhas. Este vinho careado de sol é de sabor curto, mas nobre, forte, pintado. Se cortarem presunto em Trives - o roxo presunto curado por fumo e invernia naquelas altitudes presididas pelo Manzaneda - acompanhai-o com o seu vinho.

E, sem mais, já estamos no rio Minho. Leva, juntamente com as do Sil, as águas do Avia. Ribeiro de Avia. Daqui são os ribeiros; daqui é o tostado; daqui é o vinho da região. Eu bebo vinho de Ribeiro, branco ou tinto, sempre que posso. São vinhos que não dão para melhor, que são um pouco desajeitados, mas que dão a temperatura do homem. Eu confio ainda num Sapallanzani que esclareça que estes senhoriais, honrados e católicos vinhos do Ribeiro são os tintos mais adequados para o estômago do euro­peu romano. E um bom tostado, ambrosia, mãe de levitações. Ribadavia - que é, segundo Risco, como em Praga - tem o mesmo sabor claro e aberto do seu nome: a vinho, a feno, a pêssego e a Outono.

Há um refrão antigo que digo aqui, como quem diz urna antiga canção:

O val do Rosal que moito val,

o val Fragoso e moi fermoso,

pro o val Miñor, e moito milhor.

Este refrão é como uma canção. Nestes três vales medram ve­lhas, puríssimas e nobres vinhas, palhetes, rosés, rodeiros. Os pa­lhetes brancos que saltam espumosos; os tintos, tão mate e pau­sados, canelados, lentos, que dão a volta à cabeça como numa muiñeira ritual e lacónica, de passos contados, a música em nú­meros, o lagarto da saia da Carolina abanando o rabo. Os albariños tão frescos, tão cheios de uva, com aquela cor, aquela camélia que os encerra. Aqueles rodeiros, vinhos de tasca, alvoroçadores, acres, que adquirem logo o sabor da madeira e entristecem… Nos três vales que o refrão louva crescem vinhas ricas e senhoriais, cujos vinhos derramam por aquelas terras uma neblina cor-de-rosa e uma brisa mansa.

Um lugar à parte para a península do Morrazo, não por lá se beberem vinhos ilustres, mas por eu lá ter bebido, mano a mano, com Maumau, com Agustín Cela, com o tio Juanito, com José Maria Castroviejo, com Juan Santos Ríos... Vinho de Temperán, que dá força viril, o branco do tio Juanito, alegre e longo; vinhos do Casal de Acuña, que corriam atrás da anchova; vinhos taberneiros, turvos e pobres, salobres, aguardentes que parecem lixa, boas para escoceses, talvez. E aguardente de ervas, medicinal, saponácea, anisada, que faz arrotar...

Vinhos do Lérez e do UIla, vinhos das Rias Baixas. Vinho espadeiro, que é o vinho da muiñeira e da riveirana. Mais do que do Fefiñanes, eu gosto é dos outros mais secretos albariños, príncipes requintados, quase como uma serenata italiana no silêncio de Cambados. E metendo-nos terra dentro, há vinhos como cristãos-velhos, inteiros, justos e borrachos.

Em Santiago de Compostela bebem-se todos estes vinhos melhor do que em qualquer outra parte do Mundo. Lá, entre pedra e céu, trepidando nos barris quando repicam os sinos da basílica, com aquele frio de chuva e solidão que envolve Compostela, em «El padre Benito» ou no «Senado», os vinhos da região espreitam nas taças com os seus olhos louros de pérola que chegam ao fim da sua peregrinação. E em Maio, pela Ascensão do Senhor, no carvalhal de Santa Susana, os ribeiros embalam o corpo do polvo de Arosa, curado com o vento atlântico.

Não quero deixar sem o seu ramo de louro - lambrequim dos escudos das tabernas galegas - a cidade de Betanzos, onde, quando os vinhos cadetes são frouxos, se bebe muito, embora não tanto como em Lugo, ou em Compostela. Mas em Betanzos bebe-se bem porque as suas tabernas são as mais aromáticas do país galego e as suas portas são coroadas com o ramo do louro romano. Vinhos galegos. São como nós, os galegos, somos. E, também, como as galegas. Apesar do seu sabor acre, das suas fracas forças e poucos calores, da sua cal descansada, eu gosto tanto deles como dos burguinhões, bordéus, sauternes ou quaisquer outros. Têm um amor que deve ser procurado neles, ajudando-os a deixarem-se conquistar. Vinhos humildes, honestos, mansos, suaves e indolentes, na minha mão levanto a taça para os recordar e louvar, do Minho ao Mandeo, dando a volta no mapa da minha terra.

Álvaro Cunqueiro, A Cozinha Cristã do Ocidente, Relógio D'Água, 1993, p. 95

terça-feira, dezembro 12, 2006

Javier Marías


El hombre sentimental é uma história de amor em que o amor já não se vive mas se anuncia e recorda. Pode isto acon­tecer? Algo como o amor, que é sempre urgente e inadiável, que requer a presença e a consumação ou a consumição ime­diata, pode anunciar-se sem que exista ainda, ou recordar-se realmente quando já não existe? Ou será que o próprio anún­cio e a mera recordação formam,e ainda respectivamente, parte desse amor? Ignoro-o, mas acredito que o amor está em larga medida baseado na sua antecipação e na sua memória. É o sentimento que exige maior dose de imaginação, não só quando se intui, quando o vemos chegar, e não só quando quem o experimentou e perdeu tem necessidade de o expli­car, mas também enquanto o próprio amor se desenvolve e tem plena vigência. Digamos que é um sentimento que exige sempre algo de fictício além daquilo que na realidade conse­gue. Dito por outras palavras, o amor tem sempre uma pro­jecção imaginária, por tangível ou real que o pensemos num momento dado. Está sempre por realizar; é o reino daquilo que pode ser. Ou então daquilo que poderia ter sido.


Javier Marías, Literatura e Fantasma, Relógio d'Água, 1998, p. 72 (tradução de Francisco Vale)

domingo, dezembro 10, 2006

Víctor Jara: Vamos por Ancho Camino

Hoje é um bom dia para recordar-te.