sábado, dezembro 31, 2005

Vasco Graça Moura


porque hoje termina mais um ano

porque hoje termina mais um ano
com seus surdos rumores, pouca luz
e porque o tempo treme e é no inverno
e é no inverno que a arte nos ilude

e porque a arte é por demais injusta
e o tempo transgrediu os seus limites
e ambos vivem só de se imitarem
digo que nunca errou a juventude

porque a arte é o princípio da morte e nem
(e nem sempre) teremos a coragem
a consciência ou o rigor bastantes
para tocá-las na sua ressonância

Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessenta Anos, Edições ASA, 2002, p. 19.

segunda-feira, dezembro 26, 2005

L'Homme au verre de vin



L'Homme au verre de vin

numa sala do louvre dedicada à
pintura espanhola há um quadro
atribuído à escola portuguesa
de quatrocentos. é o

homem do copo de vinho, ou, dir-se-ia,
do copo de solidão; e é possível
que seja flamengo e triste. mas tomemos
a origem indicada como boa

para esse homem que vai entrar na noite,
gravemente na noite, como numa
parda natureza. eu nunca pude
obter um slide dessa imagem,

um bilhete-postal, ou quaisquer dados
para situar aquela estranha placidez
de quem vai encontrarno vinho umas verdades, de
alguém que vou visitar de vez em quando,

para beber um copo em companhia.
é possível que fosse na flandres
algum feitor discreto e rico ou que em lisboa fosse

segurando uma alcachofra minuciosa
que o pintor depois terá mudado
para tornar mais intenso o sentimento
ou mais real a sua digna sede.

Vasco Graça Moura, Antologia dos sessenta anos, Edições ASA, 2002, p. 37.

domingo, dezembro 25, 2005

sexta-feira, dezembro 23, 2005

Jerome K. Jerome


A NOSSA FESTA DE FANTASMAS

Era Véspera de Natal.

Começo desta maneira porque é a maneira correcta, ortodoxa e respeitável de começar, e eu fui educado de uma maneira correcta, ortodoxa e respeitável, tendo sido ensinado a agir sempre de uma forma correcta, ortodoxa e respeitável - e nunca mais perdi esse hábito.

Claro que, diga-se de passagem, é perfeitamente desnecessário mencionar a data. O leitor experiente não precisa que eu lhe diga que era Véspera de Natal. É sempre Véspera de Natal numa história de fantasmas.

A Véspera de Natal é a grande noite de gala dos fantasmas, a sua festa anual. Na Véspera de Natal, toda a gente que é alguém na Terra dos Fantasmas - ou antes, falando-se de fantasmas, dever-se-ia dizer, suponho, toda a gente que é ninguém - aparece para se mostrar, para ver e ser visto, para se passear e exibir aos outros as mortalhas coleantes e as roupas com que foram para o túmulo, para criticar o estilo e desdenhar do aspecto uns dos outros.

O «Desfile da Véspera de Natal», como penso que eles próprios lhe chamam, é uma cerimónia sem dúvida primorosamente preparada e ansiada por todos os habitantes da Terra dos Fantasmas, especialmente pelo grupo dos elegantes, como os Barões assassinados, as Condessas vitimadas e os Condes que vieram com o conquistador e assassinaram os seus familiares, morrendo loucos.

Podemos estar certos de que treinam energicamente gemidos profundos e esgares demoníacos. Provavelmente ensaiam durante semanas gritos horripilantes e gestos de gelar o sangue. As correntes ferrugentas e punhais ensanguentados são inspeccionados e postos a funcionar convenientemente e os lençóis e mortalhas, cuidadosamente postos de lado desde a festa do ano anterior, são retirados, sacudidos, remendados e arejados.

Oh, a noite de 24 de Dezembro é uma noite excitante na Terra dos Fantasmas!

Os fantasmas nunca aparecem na Noite de Natal propriamente dita, como devem ter reparado. Provavelmente, a Véspera de Natal foi de mais para eles, não estão habituados a divertirem-se. Durante cerca de uma semana após a Véspera de Natal, os cavalheiros fantasmas sentem-se, com toda a certeza, muito responsáveis e passeiam­-se de um lado para o outro tomando a resolução solene de ficarem em casa na Véspera de Natal seguinte; por seu lado, as damas es­pectros mostram-se incoerentes e petulantes e, sem nenhuma razão aparente, dadas a rebentar em lágrimas e a abandonar a sala apres­sadamente mal alguém lhes dirige a palavra.

Os fantasmas sem qualquer posição a manter - meros fantasmas de classe média - de vez em quando, penso eu, fazem algumas assombrações nas suas noites de folga: na Noite das Bruxas e no solstício de Verão, e alguns deles chegam mesmo a participar em acontecimentos muito específicos - por exemplo, para celebrar o aniversário do enforcamento do avô de alguém ou para vaticinarem uma desgraça.

O vulgar fantasma britânico gosta mesmo de agoirar. Mandem-no profetizar uma desgraça a alguém e ele sentir-se-á feliz. Deixem-no forçar a entrada numa casa pacífica e pô-la de pernas para o ar por ter previsto um funeral, ou uma bancarrota ou por ter dado a entender que uma desgraça se aproximava ou qualquer outro desastre terrível, acerca do qual ninguém no seu perfeito juízo quereria saber mais cedo, e cujo conhecimento não tem qualquer utilidade, e logo ele sente que junta o útil ao agradável. Nunca perdoaria a si próprio se alguém da sua família tivesse algum problema e ele não tivesse lá estado alguns meses antes, brincando no relvado ou balan­çando-se na grade da cama de qualquer pessoa. Depois, há os fan­tasmas muito novos, ou muito conscienciosos (sentem na consciência o peso de um testamento perdido ou de um número ainda não descoberto) e que passam o ano todo a fazer assombrações; e há também o fantasma niquento, indignado por ter sido enterrado no caixote do lixo ou no lago da aldeia, e que nunca dá uma única noite de sossego aos paroquianos até alguém lhe pagar um funeral de primeira classe.

Mas estes são excepções. Como disse, o fantasma normal e tra­dicional só faz a sua aparição uma vez ao ano, na Véspera de Natal, e fica satisfeito.

Porquê na Véspera de Natal, entre todas as noites do ano, é algo que nunca consegui perceber, pois é, invariavelmente, uma das mais desanimadoras noites para andar na rua - está frio e há lama e chuva por toda a parte. Para além disso, tenho a certeza de que na época de Natal todas as pessoas já estão suficientemente ocupadas numa casa cheia de parentes vivos e não querem os fantasmas dos parentes mortos a vaguear por ali.

Deve haver algo de fantasmagórico na atmosfera do Natal, algo relacionado com a atmosfera pesada, quente e húmida e que atrai os fantasmas, tal como a humidade das chuvas de Verão faz aparecer os sapos e os caracóis.

E não são só os fantasmas que aparecem sempre na Véspera de Natal: os vivos falam sempre deles na Véspera de Natal. Sempre que cinco ou seis pessoas que falem inglês se sentam à lareira na Véspera de Natal, começam logo a contar histórias de fantasmas. Nada nos satisfaz mais na Véspera de Natal do que ouvir contar anedotas autênticas sobre espectros. É uma época fantástica e festiva e nós adoramos pensar em campas, cadáveres, assassínios e sangue.

Há muitas coisas parecidas nas nossas experiências fantasma­góricas, mas claro que a culpa disso cabe apenas aos fantasmas, que nunca experimentam truques novos e se ficam sempre pelos antigos e garantidos; como consequência, depois de participarmos numa festa na Véspera de Natal e de ouvirmos seis pessoas relatarem as suas aventuras com espíritos, nunca mais precisaremos de ouvir mais histórias de fantasmas. Escutar mais histórias de fantasmas depois disso seria como assistir a duas comédias ridículas ou ler dois jornais cómicos - a repetição seria cansativa.

Há sempre o jovem que certo ano foi passar o Natal numa casa de campo e que na Véspera de Natal foi posto a dormir na ala oci­dental. Então, a meio da noite, a porta do quarto abre-se silencio­samente e alguém - geralmente uma senhora em camisa de dormir - entra devagar e senta-se na cama. O jovem pensa que deve ser uma das visitas ou algum parente da família, embora não se lembre de alguma a vez a ter visto; julga que ela não conseguia adormecer e que, sentindo-se sozinha e desamparada, veio ao quarto dele para conversar. Não faz a mínima ideia de que se trata de um fantasma: é tão ingénuo. No entanto, ela não fala; e quando ele volta a olhar. já ela desapareceu!

Quando o jovem relata o acontecimento ao pequeno-almoço na manhã seguinte, perguntando às senhoras presentes se fora alguma delas, todas asseguram que não; o anfitrião, pálido, suplica-lhe que não fale mais do assunto, e o jovem acha que é um pedido estranho,

Depois do pequeno-almoço, o anfitrião leva o jovem para um canto e explica-lhe que o que ele viu foi o fantasma de uma senhora que tinha sido morta ou que assassinara alguém naquela mesma cama - não interessa muito qual das duas situações: pode-se ser um fantasma por se ter assassinado alguém ou por se ter sido morto, é como preferirem. O fantasma assassino é talvez o mais popular; mas, por outro lado, as pessoas assustam-se mais com um fantasma de alguém assassinado, que assim pode exibir as feridas e gemer.

Há também o convidado céptico - diga-se de passagem que é sempre o convidado que é levado à certa nestas coisas. Um fantasma nunca presta muita atenção à sua própria família: quem ele gosta de assustar é «o convidado»; este, depois de ter escutado a história de fantasmas contada pelo seu anfitrião na Véspera de Natal, ri-se e diz que não acredita em fantasmas e que para o provar dormirá no quarto assombrado naquela mesma noite.

Toda a gente lhe pede para não ser imprudente, mas ele persiste na sua insensatez e sobe despreocupadamente para o Quarto Amarelo (ou qualquer outra cor que o quarto assombrado possa ter) com uma vela na mão, desejando a todos uma boa noite e fechando a porta.

Na manhã seguinte aparece com cabelo branco, da cor da neve.

Não conta a ninguém o que viu: é demasiado horrível.

Também existe o convidado corajoso: vê um fantasma, sabe que é um fantasma e observa-o enquanto ele entra no quarto e desapa­rece através do lambril; e depois, como o fantasma não dá sinais de querer voltar - e, portanto, não vale a pena ficar acordado -, resolve dormir.

Não diz a ninguém que viu o fantasma para não assustar as pessoas – há quem se assuste tanto com fantasmas -, mas decide esperar pela noite seguinte para ver se a aparição surge de novo.

De facto, aparece de novo; desta vez, levanta-se da cama, veste­-se, penteia-se e segue-o; é então que descobre uma passagem secreta que liga o quarto à adega - uma passagem que certamente fora bastante utilizada nos maus velhos tempos de antanho.

A seguir, temos o jovem que acordou a meio da noite com uma sensação estranha e encontrou o seu tio solteiro e rico aos pés da cama. O tio rico sorri de uma forma estranha e desaparece. O jovem levanta-se imediatamente e olha para o seu relógio: tinha parado às quatro e meia porque se esquecera de lhe dar corda.

No dia seguinte, começa a investigar e descobre que, estranha­mente, o seu tio rico, de quem ele era o único sobrinho, tinha casado com uma viúva com onze filhos às onze e quarenta e cinco precisa­mente, havia apenas dois dias.

O jovem não tenta explicar aquelas estranhas circunstâncias. A única coisa que faz é atestar a veracidade da sua narrativa.

E, para mencionar outro caso, há o senhor que, após um jantar de mações, volta à noite para casa, reparando então numa luz que emergia de uma abadia em ruínas; aproxima-se sorrateiramente e espreita pelo buraco da fechadura, vendo o fantasma de uma «freira cinzenta» beijando o fantasma de um monge castanho; fica tão cho­cado e amedrontado que desmaia imediatamente, sendo descoberto na manhã seguinte caído contra a porta, ainda sem fala e apertando com toda a força na mão a sua fiel chave de casa.

Todas estas coisas acontecem na Véspera de Natal, são todas contadas na Véspera de Natal. Pois, contar histórias de fantasmas numa outra noite que não a de vinte e quatro de Dezembro seria impossível na sociedade inglesa tal como é hoje.

Jerome K. Jerome, ensaio incluso na colectânea Fantasmas para o Natal, Edições ASA, 1998, (tradução de Maria Dulce Guimarães da Costa), p. 9.

sábado, dezembro 17, 2005

Shepard


INACESSÍVEL LILLIE

Em 1890, bem nos confins do fronteiriço Texas, o juiz Roy Bean apaixonou-se perdidamente por uma fotografia da actriz Inglesa Lillie Langtry, mundialmente conhecida como «The Jersey Lily». Poucas mulheres havia naquela agreste região, para além das cavalheiras todas empoadas e pintadas que costumavam atacar nos acampamentos dos operários que andavam a construir o caminho de ferro do Pacífico Sul. O crime, todo o tipo de crimes, florescia ao longo da fronteira do Rio Pecos e do Rio Grande, e a autoridade legal mais próxima ficava a mais de cento e sessenta quilómetros dali, em Fort Stockton. Os caminhos de ferro e os rangers desesperavam à procura de um árbitro, de modo que nomearam o dono de uma loja da cidade de tendas de Vinegaroon como seu juiz de paz. Roy Bean era um homem de ar severo, pequeno mas encorpado, com uns olhos ligeiramente melancólicos e farta barba branca. A sua natureza autocrática fazia dele o homem perfeito para aquela missão e, ao fim de pouco tempo, a sua palavra era já a lei incontestada a oeste do rio Pecos. Para a aplicar, criou o mais terrível dos castigos - não o enforca­mento, mas a expulsão para aquele vasto deserto adjacente, sem armas, sem dinheiro, sem botas, e, pior do que tudo, sem um cavalo.

Roy Bean tinha um urso preto de estimação chamado Bruno, que costumava ficar preso nos degraus do tribunal improvisado, o qual servia também de salão de bilhar, de saloon e de venda de todo o tipo de géneros. Por vezes, o juiz Bean desmanchava-se em confidências com o seu urso, depois uma rápida sessão no «tribunal», acabando sempre por lhe perguntar se achava que tinha sido feita justiça. Bruno dava uma patada nos degraus poeirentos e resfolegava e o juiz ia embora satisfeito. Subia para a sua carruagem de um só cavalo e desandava para um sítio tranquilo junto ao rio. Aí, à sombra de uma velha alfarrobeira, redigia as suas cartas à inacessível Lillie. Mandava-lhe notícias da fronteira selvagem. Pequenas histórias de todos os dias, sobre homens que tinha condenado por crimes menores como enfiar escorpiões pela blusa de uma prostituta abaixo, ou por crimes maiores como o roubo de cavalos. Dizia-lhe, todo vaidoso, que tencionava organizar um combate de boxe para o título mundial em Rio Grande Sand Flat, à revelia das autoridades americanas e mexicanas e também dos rangers. E mais lhe dizia, dizia-lhe que ele, Roy Bean, se tornara um deus na sua pequena região e que adorava a imagem dela e que ansiava encontrar-se com ela num belo dia de Primavera. De vez em quando, fazia uma pausa na sua escrita, tirava a fotografia já muito gasta do bolso do colete e saboreava o perfil da amada. Os olhos baixos; o poderoso nariz aquilino, não muito diferente do seu; os lábios ligeiramente entreabertos, como que prestes a murmurar o nome dele. Certa vez, chegou mesmo a pensar que tinha ouvido a voz dela. Que a ouvira falar com ele, directamente. Todo o seu corpo empinou de um salto, fazendo com que o cavalo, assustado, partisse à desfilada, e por pouco não perdia a preciosa fotografia para o vento do Texas. E foi assim que Roy Bean escreveu à actriz um sem-número de cartas, sempre no mesmo jeito, como se estivesse em diálogo com ela, como se ela estivesse sentada ali, ao lado dele, no assento da carruagem. Nunca recebeu resposta. Escreveu-lhe que tinha chamado «The Jersey Lily» ao seu tribunal e saloon em honra dela, mas nunca rece­beu resposta. Escreveu-lhe que tinha pendurado sobre o bal­cão do saloon uma reprodução do retrato dela pintado por John Millais, e que tinha decorado os cantos da moldura com flores de cacto. Ele próprio tinha feito a decoração. Escreveu­-lhe que nenhum homem estava autorizado a sentar-se ao bal­cão do saloon, debaixo do retrato dela, sem tirar o chapéu ou a arma. Não recebeu resposta. Por fim, depois de catorze anos de obsessão e nenhum prémio, escreveu-lhe que tinha rebap­tizado a cidade inteira: Langtry, Texas. Isto chamou a atenção dela. Lillie Langtry fez uma pausa momentânea numa digres­são transcontinental. Viajava de comboio, na sua «carruagem­-palácio» privada, a que não faltavam os lustres, os tapetes persas e painéis lacados representando cenas do Oeste Selva­gem. A «Sunset Route» do Pacífico Sul estava agora completa e a linha do caminho de ferro estendia-se desde Nova Orleães até às praias douradas de São Francisco. Lillie desceu da sua carruagem e mal os seus saltos de cetim pisaram as ruas poeirentas de Langtry, informaram-na de que o bom juiz morrera um mês antes. O seu sucessor, contudo, queria oferecer-lhe, em me­mória do saudoso Roy Bean, o martelo de juiz e a espingarda do falecido. Lillie Langtry aceitou o martelo e a espingarda e seguiu viagem.

4/7/94 (LANGTRY, TEXAS)

Sam Shepard, Atravessando o Paraíso, Difel, 1997, (tradução de José Vieira de Lima), p. 107.


sábado, dezembro 10, 2005

Dylan



Uma vez em Nova Iorque, eu e a minha mulher fomos à Rainbow Room, no cimo do Rockefeller Center, para ver o Frank Sinatra Jr. que estava a cantar com uma orquestra inteira. Porquê ele e não alguém do circuito hip? Porque assim não havia complicações e perseguições... sentia alguma afinidade com ele - acho que éramos praticamente da mesma idade e que ele era meu contemporâneo. De qualquer modo, o Frank era um óptimo cantor. Eu nem queria saber se ele era tão bom ou não como o pai - ouvia-se muito bem, e gostava da sua grande e barulhenta banda. Mais tarde veio sentar-se à nossa mesa. Obviamente que o espantara que alguém como eu o tivesse ido ver, mas quando se apercebeu de que eu gostava genuinamente de melodias de grande espectáculo, pôs-se mais à vontade e relaxou, disse que gostava de al­gumas das minhas canções, «Blowin' in the Wind» e «Don't Think Twi­ce», perguntou-me em que tipo de sítios é que eu tocava (eu tinha-me retirado e vivia como um eremita mas não lhe disse isso). Falou sobre o movimento dos direitos cívicos, disse que o pai tinha sido um activista dos direitos cívicos e que tinha lutado sempre a favor dos desprotegidos - que o pai até se sentia um deles. O Frank Jr. parecia bastante esperto, nada de falso, encenado ou pomposo na sua pessoa. Havia legitimidade no que fazia, e sabia quem era. A conversa foi-se fazendo.

- Como é que achas que te sentirias - disse - se descobríssemos que os desprotegidos afinal eram uns filhos da puta?

- Não sei - respondi - provavelmente não muito bem.

Olhando pela parede de janelas tinha-se uma espectacular vista sobre a cidade. Do cimo de sessenta andares, o mundo era diferente.

Passado um bocado, comprei uma flor vermelha para a minha mulher, uma das mais belas criaturas do mundo das mulheres, levantámo-nos, despedimo-nos do Frank e saímos.

Bob Dylan, Crónicas - volume I, Ulisseia (trad. de Bárbara Pinto Coelho), p. 97.

sexta-feira, dezembro 02, 2005

Pessoa


DO "ULTIMATUM"

(ALVARO DE CAMPOS)

Mandado de despejo aos mandarins da Europa!

Fora!

Fora tu, Anatole France, Epicuro de farmacopeia homeopática, ténia - Jaurés do Ancien Régime, salada de Renan-Flaubert em louça do século dezassete, falsi­ficada!

Fora tu, Maurice Barrès, feminista da Acção, Châteaubriand de paredes nuas, alcoviteiro de palco da pátria de cartaz, bolor da Lorena, algibebe dos mortos dos outros, vestindo do seu comércio!

Fora tu, Bourget das almas, lamparineiro das par­tículas alheias, psicólogo de tampa de brazão, reles snob plebeu, sublinhando a régua de lascas os mandamentos da lei da Igreja!

Fora tu, mercadoria Kipling, homem-prático, do verso, imperialista das sucatas, épico para Majuba e Colenso, Empire-Day do calão das fardas, tramp-steamer da baixa imortalidade!

Fora! Fora!

Fora tu, George Bemard Shaw, vegetariano do pa­radoxo, charlatão da sinceridade, tumor frio do ibsenismo, arranjista da intelectualidade inesperada, Kilkenny-Cat de ti próprio, Irish Melody calvinista com letra da Origem das Espécies!

Fora tu, H. G. Wells, ideativo de gesso, saca-rolhas de papelão para a garrafa da Complexidade!

Fora tu, G. K. Chesterton, cristianismo para uso de prestidigitadores de barril de cerveja ao pé do altar, adiposidade da dialéctiva cockney com o horror ao sabão influindo na limpeza dos raciocinios!

Fora tu, Yeats da céltica bruma à roda de poste sem indicações, saco de podres que veio à praia do naufrágio do simbolismo inglês!

Fora! Fora!

Fora tu, Rapagnetta-Annunzio, banalidade em caracteres gregos, "D. Juan em Pathmos" (solo de trombone) !

E tu, Maeterlinck, fogão do Mistério apagado! E tu, Loti, sopa salgada, fria!

E finalmente tu, Rostand-tand-tand-tand-tand-tand-tand-tand!

Fora! Fora! Fora!

E se houver outros que faltem, procurem-os aí p'ra um canto!

Tirem isso tudo da minha frente!

Fora com isso tudo! Fora!

Ai! Que fazes tu na celebridade, Guilherme Segundo da Alemanha, canhoto maneta do braço esquerdo, Bismark sem tampa a estorvar o lume?!

Quem és tu, tu da juba socialista, David Lloyd George, bobo de barrete frígio feito de Union Jacks?!

E tu, Venizelos, fatia de péricles com manteiga, caída no chão de manteiga para baixo?

E tu, qualquer outro, todos os outros, açorda Briand-Dato, Boselli da incompetência ante os factos, todos os estadistas pão-de-guerra que datam de muito antes da guerra! Todos! Todos! Todos! Lixo, cisco, choldra provinciana, safardanagem intelectual!

E todos os chefes de estado, incompetentes ao léu, barris de lixo virados p'ra baixo à porta da Insuficiência da Época!

Tirem isso tudo da minha frente!

Arranjem feixes de palha e ponham-os a fingir gente que seja outra!

Tudo de aqui para fora! Tudo de aqui para fora!

Ultimatum a eles todos, e a todos os outros que sejam como eles todos!

Se não querem sair, fiquem e lavem-se.

(...)

A Europa tem sede de que se crie, tem fome de Futuro!

A Europa quer grandes Poetas, quer grandes Es­tadistas, quer grandes Generais!

Quer o Político que construa conscientemente os destinos inconscientes do seu Povo!

Quer o Poeta que busque a Imortalidade ar­dentemente, e não se importe com a fama, que é para as actrizes e para os produtos farmacêuticos!

Quer o General que combata pelo Triunfo Cons­trutivo, não pela vitória em que apenas se derrotam os outros!

A Europa quer muitos destes Políticos, muitos destes Poetas, muitos destes Generais!

A Europa quer a Grande Ideia que esteja por dentro destes Homens Fortes - a ideia que seja o Nome da sua riqueza anónima!

A Europa quer a Inteligência Nova que seja a Forma da sua Matéria caótica!

Quer a Vontade Nova que faça um Edifício com as pedras-ao-acaso do que é hoje a Vida!

Quer a Sensibilidade Nova que reúna de dentro os egoísmos dos lacaios da Hora!

A Europa quer Donos! O Mundo quer a Europa!

A Europa está farta de não existir ainda! Está farta de ser apenas o arrabalde de si-própria! A Era das quinas procura, tacteando, a vinda da Grande Humanidade!

A Europa anseia, ao menos, por Teóricos de O-que-será, por Cantores-Videntes do seu Futuro!

Dai Homeros à Era das Máquinas, ó Destinos científicos! Dai Miltons à Época das Cousas Eléctricas, ó Deuses interiores à Matéria!

Dai-nos Possuidores de si-próprios, Fortes, Completos, Harmónicos, Subtis!

A Europa quer passar de designação geográfica a pessoa civilizada!

O que ai está a apodrecer a Vida, quando muito é estrume para o Futuro!

O que ai está não pode durar, porque não é nada!

Eu, da Raça dos Navegadores, afirmo que não pode durar !

Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!

Quem há na Europa que ao menos suspeite de que lado fica o Novo Mundo agora a descobrir? Quem sabe estar em um Sagres qualquer?

Eu, ao menos, sou uma grande Ânsia, do tamanho exacto do Possível!

Eu, ao menos, sou da estatura da Ambição Imperfeita, mas da Ambição para Senhores, não para escravos!

Ergo-me ante o sol que desce, e a sombra do meu Desprezo anoitece em vós!

Eu, ao menos, sou bastante para indicar o Caminho!

Fernando Pessoa, O Rosto e as Máscaras, Ática 1976, p. 71.

quarta-feira, novembro 30, 2005

Cesariny


O POETA CAI PELA SEGUNDA VEZ


O poeta chorava

o poeta buscava-se todo

o poeta andava de pensão em pensão

comia mal tinha diarreias extenuantes

mas buscava uma estrela, talvez a salvação.

O poeta era sinceríssimo, honesto, total.

raras vezes tomava o eléctrico

em podendo

voltava

não podendo

ver-se-ia

tudo mais ou menos

a cair

de vergonha

mais ou menos

como os ladrões


E agora o poeta começou a rir

rir de vós ó manutensores

da afanosa ordem capitalista

já riu de si-mesmo, de se ter suicidado

de ter tido diarreia de não pedir dinheiro

o poeta viu chegar a orquestra dos silêncios

primeiro quis só ouvir depois teve que olhar

depois comprou jornais foi para casa leu tudo

quando chegou à página dos anúncios

o poeta teve um vómito que lhe estragou

as únicas que ainda tinha

e pôs-se a rir do logro é um tanto sinistro

mas é inevitável é um bem é uma dádiva.


Tirai-lhe agora os versos que ele próprio despreza

negai-lhe o amor que ele mesmo abandona

caçai-o entre a multidão

crucificai-o de novo mas com mais requinte.

Subsistirá. É maior do que isso.

Prendei-o. Viverá de tal forma

que as próprias grades farão causa com ele

e matá-lo não é solução

o poeta

o poeta

O POETA

destrói-vos.

Mário Cesariny, burlescas, teóricas e sentimentais, Editorial Presença, 1972, p. 61

sexta-feira, novembro 25, 2005

Brederode Santos


Salvemos o Cavaco

Se às ambições da primeira adolescência quisermos chamar veleidades, então eu admito aqui uma antiga e frustrada veleidade de zoólogo. A vida virou-me para outras coisas e eu, levianamente, deixei os bichos entregues à bicharada. Mas cá dentro, bem fundo, fiquei armadilhado por um misto de curiosidade e de remorso, o que me leva a ser espectador atento de algumas séries da televisão sobre o mundo animal. Por vezes, são até lindíssimas e os bichos comportam-se perante as câmaras com um profissionalismo e um empenho que a RTP não pode, em boa moral, exigir aos seus tarefeiros.

Há tempos, apanhei - infelizmente já a meio - um filme sobre o cavaco e o risco da sua possível desaparição. Interessei-me naturalmente pelo tema (que não pode deixar nenhum português indiferente) e tratei de o ponderar um pouco mais. Este texto reflecte, no que tem de monográfico, como no que comporta de prece e apelo, o carinho, o cuidado e o susto de um cidadão que se quer brioso.

Por tosca que seja a sua aparência e pese embora ao mito do berço humilde, o cavaco é oriundo de muito boas famílias. Ele é um Scyllarides Latus (Latreille). E embora eu esteja pouco informado da nomenclatura científica das espécies, creio que neste caso basta alguma sensibilidade fonética para que o ressaibo aristocrático salte à vista. Aliás, segundo as fichas da FAO que consultei, os malteses têm a delicadeza de lhe chamar Ckala Sewda e os tunisinos Ziz-el-Bahr. Nem um Hohenzollern é assim tratado.

Bem vistas as coisas, o caso não é para espanto de maior, que o mesmo sucede entre nós com os Silvas, por exemplo. Pululam por aí, invadiram a lista telefónica e reproduzem-se como coelhos. Mas a sua origem perde-se no melhor patriciado romano. O aristocrático general que Roma enviou para cercar e arrasar Masada foi precisamente Flavius Silva.

No entanto, tempus fugit. E Darwin mandou que as espécies evoluíssem do seu habitat. E eu não sei que ciladas e torpezas a mãe natureza reservou ao cavaco para o obrigar a chegar aos nossos dias com uma morfologia tão desencorajante.

O cavaco é um crustáceo, corrente mas indevidamente confundido com o cavaquinho (Scyllarus arcus). Mas o cavaco atinge em média os 45 centímetros (o que, transposto para escala humana, andará aí por 1,78 metros) e, segundo a monografia que lhe dedicou Helen Rost Martins (separata do ]ournal of Crustacean Biology, vol. 5, "nº 2, Maio de 1985), o exemplar mais pujante jamais apanhado pesava pouco mais de quilo e meio (o que, na transposição de escalas crustáceo/homem sugere cerca de 75 quilos).

A verdadeira comparação que se pode fazer é, pois, com a lagosta e o lavagante. Só que o cavaco não tem o glamour da lagosta nem o arreganho marialva do lavagante. Às grandes antenas de qualquer dessas espécies, o cavaco contrapõe dois trambolhos arredondados que parecem coutos feitos em cirurgia de guerra. Carece também das imponentes pinças daquelas duas espécies. Tais características não podiam deixar de ter as suas consequências e o cavaco sente-se vulnerável e perseguido.

Não dispondo de segurança bastante, aloja-se e vive em concavidades rochosas e pequenas cavernas (e, como o homem sabe por experiência, a caverna não é um ambiente adequado à sofisticação do comportamento).

A carapaça é bastante rígida, o que mais lhe dificulta os movimentos do que o protege dos seus perseguidores. Avisa a FAO que está florestada de pêlos curtos, o que não me parece constituir um problema (ou, pelo menos, não é problema meu).

A cor é castanha, mas Lyons, numa comunicação de 1982 (cit. in H.R.M., ibidem) descobriu que há uma fugaz fase anterior em que é laranja.

A tese do programa da televisão a que me reporto era a de a espécie estar em perigo pela sua incapacidade de descer às profundezas adequadas e que outros crustáceos atingem. Essa inexorável superficialidade seria a sua perdição. Antes de mais, por sofrer um impacte superior da poluição das águas. Depois, pela acção de um predador específico: o mero. Um mero mero devora cavacos em série com invejável desenvoltura, desde que este ponha a cabecinha fora da gruta ou se passeie cá por fora com aqueles cinco pares de patas que não devem dar jeito nenhum para saltar barreiras. Enfim, pela pesca humana. Na Madeira, segundo Maul (H.R.M., ibidem), encontra-se extinto. (Quem diria?) Na costa nordeste de África, segundo Maigret (idem, mas não é esse) também. Em Cabo Verde subsiste, mas deixa-se apanhar por grosso em armadilhas submarinas, que cobardemente exploram a dificuldade do cavaco em entender a psicologia humana (sendo certo que a falta de antenas decentes o priva de agarrar o subtil e que a falta de pinças o impede de agarrar seja o que for). Nos Açores e nas Canárias o método predominante é o artesanal: o da pesca por mergulho. (Na esteira do que dizia De Gaulle sobre o poder político em França: não se conquista, apanha-se à mão.) H.R.M. (ibidem), sendo menos catastrofista quanto ao ritmo da extinção do cavaco, admite, contudo, que a versão dominante é a de que o número de exemplares em águas açorianas diminuiu drasti­camente nos últimos anos. (E eu assumo a responsabilidade científica de afirmar o mesmo relativamente às cidades e campos de Portugal, com base em observações pessoais empíricas, mas bastante sistemáticas.)

O principal trunfo para a sobrevivência da espécie deveria consistir na capacidade de reprodução do cavaco: a postura inicia-se no fim de Junho (informação útil para meros, predadores menores e ainda outros) e pode atingir os 350 mil ovos! Só que a esmagadora maioria dos ovos se perdem. Em Portugal, em 1987, registou-se um caso único de desova incomensuravelmente maior e hoje vemos a dimensão a que pequenos predadores e outros mal-intencionados a reduziram já.

Da eclosão feliz de um ovo emerge a «larva nauplosiana». Registo o facto incidentalmente, porque tenho inúmeros amigos pessoais nessa categoria e nem eles nem eu sabíamos que têm todo o direito a usar tal título nos seus cartões de visita.

Volvendo ao fundo da questão. O cavaco será tosco ou menos grácil e brioso. Custar-nos-á que não tenha nenhum sentido épico de destino, contentando-se com a duvidosa tentativa de autoperpetuação pela desova grossista. Mas é uma criatura de Deus, um animal do nosso mundo e está em vias de extinção. Os senhores deputados, que já salvaram o lince da Malcata e o lobo ibérico, não poderão fazer nada para salvar o cavaco?

Nuno Brederode Santos, Rumor Civil, Relógio d'Água, p. 219.

domingo, novembro 20, 2005

Maria Filomena Mónica


Eu nunca havia estado a sós, num espaço fechado, com um homem. Percebi que raiava o interdito quando, após carícias, ele começou a despir-se. Era a primeira vez que via um homem nu. As formas masculinas – as nádegas verticais, o peito com pêlos, as pernas secas – eram mais belas do que imaginara. Deitei-me no sofá, olhando o deus que, sobre mim, se reclinava. Se descobrira o sexo, ignorava as consequências. Ou, pelo menos, não queria pensar nelas. Foi com espanto que olhei o rosto atemorizado do Carlos, quando, algumas semanas depois, lhe comuniquei que «a história» não me aparecia, o que, sendo o meu corpo de uma regularidade impecável, poderia estar ligado a algo que convinha descobrir. Foi ele que me anunciou estar grávida. Eu havia, sem dúvida, pecado por pensamentos, palavras e obras, mas jamais imaginara que Deus cobrasse um preço tão elevado por uma única transgressão.

Maria Filomena Mónica, Bilhete de Identidade, Alêtheia Editores, 2005, p. 168.

domingo, novembro 13, 2005

Salinger


De repente, a caminho do átrio, veio-me outra vez ao pensamento a amiga Jane Gallagher. E é que não a tirava da ideia. Sentei-me na cadeira com ar de vomitado no átrio e pus-me a pensar nela e no Stradlater sentados na merda do carro do Ed Banky, e, embora tivesse quase a certeza de que o amigo Stradlater não a tinha comido – para mim a amiga Jane era um livro aberto -, a verdade é que não conseguia tirá-la da ideia. Para mim era um livro aberto. A sério. Quer dizer, além das damas, gostava imenso de desporto e, depois de a ter conhecido, jogámos ténis os dois a bem dizer todas as manhãs e golfe quase todas as tardes. Acabei por ter com ela bastante intimidade. Não quero dizer que fosse alguma coisa física ou assim - não era -, mas víamo-nos a cada momento. Nem sempre é preciso que seja uma coisa sexual para conhecer uma miúda.

A maneira como a conheci foi por causa do doberman pinscher dela que tinha a mania de vir aliviar-se no nosso relvado, e a minha mãe ficava bestialmente irritada com isso. Chamou a mãe da Jane e armou um grande escarcéu. A minha mãe é capaz de armar un grande escarcéu por coisas do género. E então acontece que daí a dias vi a Jane deitada de barriga para baixo junto à piscina, no clube, e disse-lhe olá. Sabia que ela vivia na casa ao lado da nossa, mas nunca tinha falado com ela ou assim. Mas nesse dia ela respondeu com grande frieza ao meu olá. Tive uma trabalheira do caneco para a convencer de que me estava completamente nas tintas para saber onde o cão dela fazia as necessidades. Por mim, podia até fazê-las na sala de estar. Mas enfim, depois disso, a Jane e eu ficámos amigos e tudo. Joguei golfe com ela nessa mesma tarde. Ela perdeu oito bolas, ainda me lembro. Oito. Levei um tempão do caneco a convencê-la pelo menos a abrir os olhos quando dava uma tacada na bola. Mas ajudei-a imenso a melhorar o jogo dela. Sou bastante bom no golfe. Se lhes dissesse em quantas tacadas faço o campo, se calhar não acreditavam. Uma vez estive para entrar num documentário, mas mudei de ideia no úl­timo momento. Lembrei-me de que alguém que odeia tanto o cinema como eu, só se fosse um camelo é que deixava que me pusessem num documentário.

Era uma miúda engraçada, a Jane. Não vou dizer que seja propriamente uma beleza. Mas deixava-me banzado. Era género multi­-bocas. Quer dizer, quando falava e se entusiasmava com alguma coisa, era como se a boca dela se mexesse em cinquenta direcções, lábios e tudo. Ficava banzado. E realmente nunca a fechava completamente, a boca. Tinha-a sempre um bocadinho aberta, especialmente quando se punha em posição no golfe, ou quando estava a ler algum livro. Esta­va sempre a ler, e lia livros muito bons. Lia uma data de poesia e tudo. Fora da minha família, foi ela a única pessoa a quem mostrei a luva de basebol do Allie, com os poemas todos que tinha escritos e tudo. Ela não tinha conhecido o Allie nem nada, porque era o primeiro Verão que passava no Maine - antes disso ia para Cape Cod -, mas eu contei-lhe muita coisa sobre ele. Era o tipo de coisas que a inte­ressavam.

A minha mãe não gostava muito dela. Quer dizer, a minha mãe sempre achou que a Jane e a mãe dela estavam a dar-se ares com ela ou coisa assim quando não a cumprimentavam na rua. A minha mãe via-as imenso na aldeia, porque a Jane costumava ir com a mãe ao mercado naquele LaSalle descapotável que eles tinham. A minha mãe nem sequer achava que a Jane fosse bonita. Mas eu achava. Tinha um ar que me agradava, é isso.

Ainda me lembro daquela tarde. Foi a única vez em que eu e a Jane estivemos a ponto de nos pormos na marmelada. Era um sábado e chovia a potes, e eu estava em casa dela, no alpendre – tínhamos daqueles grandes alpendres fechados. Estávamos a jogar às damas. De vez em quando, punha-me no gozo por ela nunca mexer as damas da última fila. Mas não gozava de mais. Não dava muita vontade de abusar a gozar a Jane. Para dizer a verdade, acho que gramo mais gozar à brava uma miúda quando tenho uma ocasião, mas é uma coisa esquisita. As miúdas de quem mais gosto são as que não me dá muito para gozar com elas. Às vezes parece-me que gostavam que gozasse com elas - ou antes, sei que gostavam -, mas é difícil começar, quando as conhecemos há uma data de tempo e nunca gozámos com elas. Mas enfim, estava a contar-lhes aquela tarde em que eu e a Jane estivemos a ponto de fazer marmelada. Estava a chover como o caraças e nós estávamos no alpendre, e às tantas o tipo que se tinha casado com a mãe dela, o tal que se metia nos copos, veio ao alpendre e perguntou à Jane se havia cigarros em casa. Eu não o conhecia bem nem nada, mas parecia-me o tipo de gajo incapaz de falar com uma pessoa a não ser que quisesse sacar-lhe alguma coisa. Tinha um feitio lixado. Mas enfim, a amiga Jane não respondeu nada quando ele lhe perguntou se ela sabia se havia cigarros. Então, o gajo voltou a perguntar, mas ela continuou sem responder. Nem sequer levantou os olhos do jogo. O gajo acabou por voltar para dentro de casa. Quando ele saiu, perguntei à Jane que raio se passava. Mas ela nem sequer respondeu nem a mim. Fez que se concentrava na jogada que ia fazer e assim. Então, de repente veio aquela lágrima que caiu no tabuleiro. Num dos quadrados vermelhos - eh pá, ainda a estou a ver. Ela limpou-a com o dedo. Não sei porquê, mas aquilo mexeu bestialmente comigo. E o que eu fiz foi aproximar-me e fi-la afastar-se no banco de baloiço para me poder sentar ao lado dela - a bem dizer fiquei sentado nos joelhos dela, para dizer a verdade. E então ela começou mesmo a chorar, e eu dei por mim a beijá-la por toda a parte - nos olhos, no nariz, na testa, nas sobrancelhas, nas orelhas -, na cara toda, tirando a boca e assim. Na boca, ela não queria. Mas enfim, foi dessa vez que estivemos mais perto de fazer marmelada. Passados uns instantes, ela levantou-se, entrou em casa e vestiu aquela camisola vermelha e bran­ca que ela tinha, que me deixava sem fala, e fomos ver a merda de um filme. Pelo caminho, perguntei-lhe se o Sr. Cudahy - era como se chamava o gajo dos copos - alguma vez se tinha atirado a ela. Era ainda bestialmente nova, mas tinha uma figura fantástica, e não me admirava nada que aquele sacana do Cudahy tentasse. Nunca vim a saber que raio se passou. Há miúdas com quem nunca sabemos o que é que se passou.

Não quero que fiquem com a ideia de que ela era alguma pedra de gelo ou coisa assim, lá porque nunca fizemos amor nem estivemos na marmelada. Não era. Passava o tempo de mãos dadas com ela, por exemplo. Não parece grande coisa, bem sei, mas é que ela era bestial a andar de mãos dadas. A maior parte das miúdas se lhes damos a mão, a merda da mão delas ou morre na nossa ou então acham que têm que estar sempre a mexer a mão ou coisa assim. Com a Jane era diferente. Íamos à merda de um filme ou assim, e dávamos logo as mãos e não largávamos até o filme acabar. E sem mudar de posição e sem fazer disso uma grande coisa. Com a Jane, nem sequer me cha­teava a pensar se tinha as mãos suadas ou não. A única coisa que sabia é que era feliz. E era mesmo.

Pensei agora noutra coisa. Uma vez, durante um filme, a Jane fez uma coisa que me deixou banzado. Estavam a dar as actualidades ou coisa do género, e às tantas senti uma mão na nuca, e era a da Jane. Era uma coisa esquisita. Quer dizer, ela era muito nova e tudo, e a maior parte das miúdas que vemos a pôr a mão na nuca de alguém têm à volta de vinte e cinco anos ou trinta e normalmente fazem isso ao marido ou ao filho pequeno - eu faço isso à minha irmãzinha Phoebe uma vez por outra, por exemplo. Mas se uma miúda é bas­tante nova e tal e faz isso, é uma coisa tão gira que quase nos deixa sem fala.

Mas enfim, era nisso que estava a pensar quando me sentei na­quela cadeira com ar de vomitado no átrio do hotel. Na amiga Jane. De cada vez que chegava àquela parte com ela e o Stradlater no raio daquele carro do Ed Banky, ficava quase maluco. Sabia que ela não o deixava chegar à grande área, mas ficava maluco na mesma. Nem sequer quer gosto de falar nisso, se querem saber a verdade.

A bem dizer, já não estava ninguém no átrio. Mesmo as loiras com ar de putas já lá não estavam, e de repente veio-me uma enorme vontade de me pôr a milhas. Era demasiado deprimente. E eu não me sentia cansado nem nada. Por isso subi ao quarto e vesti o sobretudo. Dei também uma vista de olhos pela janela a ver se todos aqueles tarados ainda estavam em acção, mas agora as luzes estavam apagadas e tudo. Voltei a descer no elevador, apanhei um táxi e disse ao motorista para me levar ao Ernie's. O Ernie's era um night club em Greenwich Village que o meu irmão D.B. costumava frequentar antes de se ir prostituir para Hollywood. Costumava levar-me com ele uma vez ou outra. O Ernie é um tipo gordo enorme de cor que toca piano. É um snobe tramado e nem sequer fala com as pessoas, a não ser que se trate de algum manda-chuva ou alguém famoso ou coisa assim, mas realmente sabe tocar piano. É tão bom que é quase piroso, de facto. Não sei bem o que quero dizer com isto, mas é isso que quero dizer. É certo que gosto de o ouvir tocar, mas às vezes dá-me vontade como que de lhe virar o piano de pernas para o ar. Acho que é porque às vezes quando ele toca, sentimos que é o tipo de gajo que só fala connosco se formos algum manda-chuva.

J.D.Salinger, À Espera no Centeio, Difel, 2005, p. 88.

quinta-feira, novembro 10, 2005

Walser



BASTA !

Vim ao mundo a tantos de tal, fui educado em tal sítio, fui para a escola como qualquer um, sou isto e aquilo, chamo-me fulano de tal e não penso muito. Do ponto de vista do género sou do sexo masculino, do ponto de vista do estado sou um bom cidadão e do ponto de vista social pertenço à melhor sociedade. Sou um membro impecável, pacato e amável da sociedade humana, um dos chamados bons cidadãos, gosto de beber o meu copo de cerveja sobriamente, e não penso muito. Assim, não é de espantar que de preferência coma bem e também não é de espantar que as ideias não se aproximem de mim. O pensamento arguto é-me com­pletamente alheio. As ideias ficam sempre muito longe de mim e por isso sou um bom cidadão, já que um bom cidadão não pensa muito. Um bom cidadão come o que tem a comer e isso basta!

Não esforço particularmente a cabeça, deixo isso às outras pessoas. Quem esforça a cabeça torna-se odiado. Quem pensa muito tem fama de ser incómodo. Já Júlio César apontava o dedo grosso ao Cássio, esquelético e de olhos encovados, a quem temia porque suspeitava que ele tinha ideias na cabeça. Um bom cidadão não pode inspirar medo e suspeita. Pensar muito não é o seu ofício. Quem pensa muito torna-se mal amado e é inteiramente desnecessário ser mal amado. Ressonar e dormir é melhor ser poeta ou pensar. Vim ao mundo a tantos de tal, fui à escola em tal sítio, leio ocasionalmente o jornal, tenho a profissão tal e tal, tenho tantos e tantos anos, pareço ser um bom cidadão e gostar de comer bem. Não esforço especialmente a cabeça, já que deixo isso às outras pessoas. Matar a cabeça a pensar não é o meu forte, pois quem pensa muito padece de dores de cabeça e a dor de cabeça é inteiramente supérflua. Dormir e ressonar é melhor do que matar a cabeça e beber um copo de cerveja sobriamente é de longe melhor do que ser poeta e pensar. As ideias ficam sempre longe de mim e não desejo, em circunstância alguma, matar a cabeça, deixo isso aos homens que dirigem o estado. Por isso sou justamente um bom cidadão, para viver em paz, para não precisar de esforçar a cabeça, para que as ideias fiquem longe de mim e para que possa morrer de medo de ter que pensar muito. Tenho receio do pensamento arguto. Sempre que penso com argúcia, fica tudo azul e verde diante dos meus olhos. Prefiro beber um bom copo de cerveja e deixar qualquer pensamento arguto para os dirigentes do estado. Os políticos podem, pois, pensar com quanta argúcia quiserem, até a cabeça lhes estoirar. Diante dos meus olhos fica sempre tudo azul e verde quando puxo pela cabeça, o que não é bom, por isso a esforço o menos possível e me mantenho completamente acéfalo e sem ideias. Quando apenas os políticos pensam até tudo lhes ficar azul e verde diante dos olhos e a cabeça lhes saltar, tudo está em ordem, e nós, os da nossa espécie, podemos beber em paz o nosso copo de cerveja, sobriamente, de preferência comer bem e à noite dormir tranquilamente e ressonar, admitindo que ressonar e dormir seja melhor do que dar cabo da cabeça e do que ser poeta e pensar. Quem esforça a cabeça apenas se torna mal amado e quem apregoa intenções e opiniões fica com fama de ser uma pessoa incómoda, ao passo que um bom cidadão não deve ser incómodo, mas antes uma pessoa amável. É por isso que eu deixo aos homens políticos, tranquilamente, o pensamento arguto que dá cabo da cabeça, pois nós, os da nossa espécie, não passamos de membros sólidos mas insignificantes da sociedade humana, dos chamados bons cidadãos ou filisteus, que gostam de beber sobriamente o seu copo de cerveja e de comer um bom e belo prato de comida bem suculenta, e isso basta!

Os homens políticos devem pensar até confessarem que tudo ficou verde e azul diante dos seus olhos e que têm dores de cabeça. Um bom cidadão nunca deve ter dores de cabeça, pelo contrário, o seu belo copo deve sempre saber-lhe bem, na mais saudável sobriedade, e à noite deve dormir tranquilamente e ressonar. Chamo-me fulano de tal, vim ao mundo a tantos de tal e fui manda­do para a escola como toda a gente, em cumprimento do dever, em tal e tal sítio, sou isto e aquilo de profissão, tenho tantos e tantos anos e dispenso pensar muito e esforçadamente, porque deixo com prazer o esforço mental e as avassaladoras dores de cabeça às cabeças daqueles que dirigem e decidem e que se sentem res­ponsáveis. Nós, os da nossa espécie, não sentimos nenhum tipo de responsabilidade, já que a nossa espécie bebe sobriamente o seu copo e não pensa muito, pois deixa esse deleite muito especial para as cabeças que têm a responsabilidade. Fui à escola em tal e tal sítio, onde fui obrigado a esforçar a cabeça, a qual, desde então, não voltei a esforçar regularmente nem a ocupar por muito tempo. Nasci a tantos de tal, chamo-me fulano de tal, não tenho responsabilidade nenhuma e não sou, de forma alguma, o único. Felizmente há muitos, mesmo muitos, que, como eu, saboreiam sobriamente o seu copo de cerveja, que, tal como eu, pensam pouco e não gostam de matar a cabeça, que preferem alegremente deixar isso para outras pessoas, por exemplo, para os políticos. O pensamento arguto é-me a mim, tranquilo membro da sociedade humana, completamente estranho e, felizmente, não apenas a mim, mas a legiões de outros que, como eu, preferem comer bem e não pensar muito, têm tantos e tantos anos, foram educados em tal e tal sítio, são membros impecáveis da sociedade, como eu, são bons cidadãos, como eu, e para os quais o pensamento arguto é tão estranho como para mim, e isso basta!

Robert Walser, O Passeio e Outras Histórias, Granito Editores e Livreiros, 2001, pag. 99.

domingo, novembro 06, 2005

Yourcenar


"Devo confessar que acredito pouco nas leis. Demasiado duras, são transgredidas com razão. Demasiado complicadas, o engenho humano encontra facilmente maneira de se escapar por entre as malhas dessa massa monótona e frágil. O respeito pelas leis antigas corresponde ao que tem de mais pro­fundo a piedade humana; serve também de almofada à inércia dos juizes. As mais velhas participam daquela selvajaria que se empenhavam em corrigir; as mais venerá­veis são ainda um produto da força. A maior parte das nos­sas leis penais só atinge, talvez felizmente, uma pequena parte dos culpados; as nossas leis civis nunca serão bastante maleáveis para se adaptar à imensa e fluida variedade dos factos. Mudam menos rapidamente que os costumes; peri­gosas quando eles as ultrapassam, são-no ainda mais quando pretendem precedê-los. E contudo, deste amontoado de inovações que oferecem tantos riscos ou de rotinas envelhecidas emergem, aqui e ali, como na medicina, algumas fórmulas úteis. Os filósofos gregos ensinaram-nos a conhe­cer um pouco melhor a natureza humana. Há já algumas gerações que os nossos juristas trabalham na direcção do senso comum. Eu próprio realizei algumas dessas reformas parciais que são as únicas duradouras. Toda a lei muitas vezes transgredida é má: compete ao legislador revogá-Ia ou substituí-Ia, para que o desprezo em que essa louca deter­minação caiu se não estenda a outras leis mais justas. O fim que eu me propunha era uma prudente abolição de leis supérfluas, um pequeno grupo de sábias decisões firmemente promulgadas. Parecia ter chegado o momento de, no inte­resse da humanidade, revalorizar todas as prescrições antigas.

Em Espanha, num dia em que eu visitava sozinho uma exploração mineira nos arredores de Tarragona, um escravo, cuja vida se passara quase inteiramente naqueles corredo­res subterrâneos, atirou-se a mim com uma faca. Não ilo­gicamente, vingava-se no imperador dos seus quarenta anos de servidão. Desarmei-o facilmente; entreguei-o ao meu médico; a sua fúria abrandou; transformou-se no que verdadeiramente era, um ser menos ajuizado que outros e mais fiel que muitos. Este delinquente que a lei rigorosamente aplicada teria mandado matar sem demora tornou-se para mim um útil servidor. A maior parte dos homens parece-se com este escravo: submeteram-se de mais; os seus longos períodos de embotamento são interrompidos por algumas revoltas tão brutais quanto inúteis. Eu queria ver se uma liberdade sensatamente compreendida não daria melhor resultado, e espanta-me que semelhante experiência não tenha tentado outros príncipes. Este bárbaro condenado ao trabalho das minas tornou-se para mim o símbolo de todos os nossos escravos, de todos os nossos bárbaros. Não me parecia impossível tratá-los como eu tinha tratado este homem, torná-los inofensivos à força de bondade. contanto que soubessem primeiro que a mão que os desarmava era firme. Até agora todos os povos decaíram por falta de generosidade: Esparta teria sobrevivido mais tempo se tivesse interessado os hilotas na sua sobrevivência; um belo dia Atlas deixa de suportar o peso do céu e a sua revolta faz estremecer a Terra. Teria querido afastar o mais possível, evitar se pudesse, o momento em que os bárbaros do exterior e os escravos do interior se lançarão sobre um mundo que lhe mandam respeitar de longe ou servir como inferiores, mas cujos benefícios não são para eles. Empenhava-me em que a mais deserdada das criaturas, o escravo que limpa as cIoacas da cidade, o bárbaro esfomeado que ronda as fronteiras tivessem empe­nho em que Roma durasse.

Duvido de que toda a filosofia do mundo consiga su­primir a escravatura: o mais que poderá suceder é muda­rem-lhe o nome. Sou capaz de imaginar formas de servidão piores que as nossas, por serem mais insidiosas: seja que consigam transformar os homens em máquinas estúpidas, e satisfeitas, que se julgam livres quando estão subjugados seja que desenvolvam neles, com exclusão dos repousos e prazeres humanos, um gosto pelo trabalho tão arrebatado como a paixão da guerra entre as raças bárbaras. Prefiro ainda a nossa escravidão de facto a esta servidão do espírito ou da imaginação. Seja como for, o horrível estado que põe o homem à mercê de um outro homem precisa de ser cuidadosamente regulado pela lei. Estive atento a que o escravo não continuasse a ser aquela mercadoria anónima que se vende sem ter em conta os laços de família que ele haja criado, esse objecto desprezível de que um juiz não regista o testemunho senão depois de o ter submetido à tortura, em vez de o aceitar sob juramento. Proibi que o obrigassem às profissões degradantes ou perigosas, que o vendessem aos donos de casas de prostituição ou às escolas de gladiadores. Que aqueles que gostam dessas profissões sejam os únicos a exercê-Ias: serão assim mais bem desempenhadas.

(...)

Uma parte dos nossos males provém de haver demasia­dos homens excessivamente ricos ou desesperadamente po­bres. Por felicidade, no nosso tempo, tende-se a estabelecer um equilíbrio entre estes dois extremos: as fortunas colos­sais dos imperadores e dos libertos pertencem ao passado: Trimalcião e Nero morreram. Mas pelo que respeita a um inteligente reajustamento económico do mundo, tudo está por fazer. Ao chegar ao poder renunciei às contribuições voluntárias das cidades para o imperador, que não são mais que um roubo disfarçado. Aconselho-te a, por tua vez, renunciares também a elas. A anulação completa das dívidas dos particulares ao Estado era uma medida mais arriscada, mas necessária para fazer tábua rasa depois de dez anos de economia de guerra. A nossa moeda tem-se desvalorizado perigosamente de há um século para cá: é todavia pela taxa das nossas moedas de ouro que se avalia a eternidade de Roma: compete-nos restituir-lhes o seu valor e o seu peso solidamente medidos em coisas. As nossas terras são apenas cultivadas ao acaso: só distritos privilegiados, o Egipto, a África, a Toscana e alguns outros, souberam criar comu­nidades camponesas sabiamente exercitadas na cultura do trigo ou da vinha. Um .dos meus cuidados era amparar esta classe, tirar dela instrutores para populações aldeãs mais primitivas ou mais rotineiras, menos hábeis. Pus termo ao escândalo das terras deixadas em alqueive por grandes proprietários pouco cuidadosos do bem público: todo o campo não cultivado há cinco anos passou a pertencer desde então ao cultivador que se encarrega de o fazer produzir. Sucedeu pouco mais ou menos o mesmo com as explora­ções mineiras. A maior parte dos nossos ricos faz enormes donativos ao Estado, às instituições públicas, ao príncipe. Muitos agem assim por interesse, alguns por virtude; quase todos ganham com isso. Mas eu teria querido ver a sua generosidade tomar outras formas que não fossem a da ostentação na esmola, ensinar-lhes a aumentar sensata­mente os seus bens no interesse da comunidade, como só têm feito, até aqui, para enriquecer os seus filhos. Foi nesse espírito que eu próprio tomei nas minhas mãos a administração do domínio imperial: ninguém tem o direito de tratar a terra como o avaro o seu pote de ouro."

Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, Ulisseia (2ª ed., 1983), p. 99.


sábado, outubro 29, 2005

Cernuda


Que ruído tão triste

Que ruído tão triste fazem dois corpos quando se amam,

parece o vento que se move no outono

sobre adolescentes mutilados,
enquanto as mãos chovem,
mãos ligeiras, mãos egoístas, mãos obscenas,
cataratas de mãos que foram um dia

flores no jardim de uma algibeira tão pequena.

As flores são areia e as crianças são folhas,
e o seu leve ruído é amável ao ouvido
quando riem, quando amam, quando beijam,

quando beijam o fundo
de um homem jovem e cansado

porque dantes sonhou de dia e de noite.


Mas as crianças não sabem,
nem tão-pouco as mãos chovem como dizem;

assim o homem, cansado de estar sozinho com seus sonhos,
invoca as algibeiras que abandonam areia,
areia das flores,
para que um dia decorem a sua face de morto.

(Los placeres prohibidos)

Luis Cernuda, 20 Poetas Espanhóis do Século XX, Alma Azul, 2003, (tradução de Ruy Ventura), p. 95.

sexta-feira, outubro 28, 2005

Nuvens

Assis Pacheco



BRENDA. De Bâton Rouge.

Inscrita na agenda em Baltimore, Maryland, a meia centena de metros da igreja de Westmins­ter, ao pé de onde está sepultado Edgar Allan Poe.

Brenda romântica:

«Porra, mais uma seca no bar e não me estreava hoje!»

Brenda de cabelo ruivo, ruivo pouco natural, atentas as tintas. O indicador direito castanho dos cigar­rómetros. Mamas caídas, que se adivinhavam e eu de­pois tive tempo de analisar com a paixão do entomologista. Quarentas bem medidos, ou como ela meta­forizou no minuto do chuveiro:

«Desculpa lá, pareço uma cafeteira toda rota.»

«Pareces nada.»

«Pareço. Precisava de dez pingos de solda para não dar barraca. Olha, deixa andar.»

Brenda ainda na fase da pré-asfixia pulmonar, à barra, para o artolas de mim:

«Pagas um bourbon?»

«Pago se a seguir a esse beberes outro.»

«Bonzinho!»

«É conforme.»

«Conforme a xandra, queres tu explicar.»

«Conforme a xandra, acertaste.»

«Lá gentil és.»

«Se sou.»

Brenda deita contas à vida, sagaz, tipo psicanalista da Escola Steker:

«Cinquentas. Não há descontos.»

«Vai bebendo o copo que já falamos.»

Agora dou-lhe que matutar. Pois se há cinco minu­tos a engatei com todos os matadores, beijinho na orelha, mãozorra no casqueiro, cheio de olés, e não pego na bisca! O seu latim estará condenado a perder-se? Não está, sou realmente bonzinho.

«Xandras de cinquentas não me interessam. Dou cens. Pago adiantado», digo e lanço o mindinho à carteira.

Brenda não cabe em si: de pasmo, de hipocrisia sulista, de chewing-gum na boca. Saliva abundante­mente quando vê os cens. Deve recordar-se de uns lampejos felizes na adolescência, a escola dominical, o piquenique do liceu, e jura que chora, mas eu ponho­-me a pau e estipulo condições:

«Se choras baixo para os trinta.»

Pronto, não chorou, exigindo de permeio um par luvas de pelica, comprei as luvas, um romance de sexo e tiros, comprei o romance, e morria por um hamster coitadinho na montra duma loja de bichos, o hamster não comprei porque cheirava mal e eu de­testo essências exóticas.

O motel tinha uma tabuleta a dizer Voyage. Era como Brenda, pagava-se adiantado. O tipo da recepção acumulava com barman, e foi questionando sobre as nossas referências líquidas:

«Um manhattan? Para a senhora um bloody Mary? Não? Bourbon para o casal?»

Descansei-o:

«Bebemos água da companhia.»

Fingiu que gostara da graça e deu-me a chave do cortiço com uma toalha, um toalhete e um sabonete minúsculo de propaganda aos Orioles campeões de ba­seball.

Já no quarto Brenda, a xandra, bocejou:

«Apetecia-me era chonar.»

«Depois do xeque ao bispo», especifiquei para não comido.

«OK, OK», disse Brenda engolindo o bocejo. Mostra lá à menina esse furta-cores.»

Daí a minutos, despachado dos cens, procurei averiguar se Brenda fazia um saldo jeitoso para a segunda travessia no arame, e foi a vez de ela dominar o jogo com esta filosófica tirada:

«Vocês, pobrezinhos, sei lá quando voltam a pinocar. É o que tu quiseres, que eu gosto mais disto do que gosto de chili.»

Gostava sem reticências. Quando comparo a Ar­lete à Brenda não posso deixar de lamentar a inclina­ção, e a perseverança, do Mac. Quarentas à base de ginástica sueca, se me permitem o circunlóquio! O Poe é que sabia!

Brenda tomou duas chuveiradas, palmou o que era de palmar, cinzeiro, guardanapos de papel, Bíblia Gi­deon (que lhe repalmei), frasco de after-shave, res­guardo «higienizado» da retrete, vestiu-se demorada­mente, folheou o livro que eu andava na altura a ler, um Bukowski, às dez e meia da manhã (do dia seguinte, dólares bem gastos!) fez bye-bye e pespegou-me um baby no entredentes.

«Sempre vais para o Vietnam?», perguntou sem grande crença na minha história da véspera.

«Sempre», cuspi de mistura com o pastoso baby da cena anterior.

«E vais ganhar o céu, estou a ver», disse ela.

Enrolei-me no cobertor:

«Os anjinhos de Saigão têm os olhos em fenda.»

«Devem ter, devem!», abanou ela a cabeça. «Olha mas é os escarépios, não venhas contar que fui eu. Limpinha como o Santo Sepulcro!»

E ergueu dois dedos no sinal dos escuteiros.

Fernando Assis Pacheco, Walt, Livraria Bertrand, 1979, p. 45.

sexta-feira, outubro 14, 2005

Sena


Num ímpeto brusco, que o despegou do corpo dela, rolou e parou deitado ao lado, com a mão esquerda esten­dida por cima dos cabelos soltos dela, que roçava, e a mão direita pousada entre os dois seios, sentindo, menos que o coração batendo, a tremura ténue que a ficara percorrendo. De olhos fechados, ela trouxe as mãos sobre a dele, segu­rando-a, sem força, contra o peito. Então, a mão, sob as outras, deslizou um pouco e, entre o polegar e os dedos estendidos, tomou a curva da inserção do seio, que, com um jeito oscilante do pulso, ia contornando cariciosamente. As mãos dela apertaram a sua, e ela, descaindo a cabeça, fitou-o.

Olhou-o docemente, num olhar húmido e quebrado em que as feições dele evoluíam incertas, ao sabor das sombras e do encantamento que ainda perdurava nela, e tomando aspectos diversos, ora confundidos, ora sucessivos, em que havia traços dos retratos dele em criança e em adolescente, quando o não conhecera, e recordações de ângulos em que surpreendera a cabeça dele e lhe haviam ficado pela sobressaliência, que destacara então, de um pormenor qualquer, uma comissura dos lábios, um recanto de pálpebra, uma nódoa da barba, um delicado contorno da orelha.

(...)

A mão, espalmando-se no peito, esfregou os pêlos ao arrepio deles, que não eram crespos, mas, salvo num ou noutro redemoinho, dirigidos no sentido do ventre, a cujo umbigo pareciam apontar. Senti-los assim correr na sua palma revirados, e poder repô-los depois com repetida carícia, era uma forma de exorcismo, uma maneira de afugentar a apreensão que a pele dele, atraindo-a, lhe causava. Foi descendo depois com a mão, prolongando pelo tronco abaixo as carícias com que repunha os pêlos. Numa aspiração entre­cortada e dupla, como um indistinto soluço, ele suspirou.

Então, a mão ficou retida no umbigo. E os olhos pers­crutaram o rosto dele, que continuava imóvel, pálpebras cerradas, sobrancelhas soerguidas, boca ligeiramente entrea­berta. Só o nariz parecia palpitar. A mão levantou-se e pairou hesitante: pousaria quieta, afagaria um pouco, regressaria, avançaria, ou retirar-se-ia?

Embora conhecesse por experiência as reacções que a tudo, diversas, ele poderia ter, não sabia, na solidão que começava a invadi-la, qual das reacções preferia, para estilha­çar-lhe o vidro que se interporia nela, entre o ardor sequioso, latejando no pescoço e no ventre, e a coragem de provocar um gesto decisivo que poderia ofendê-la, ou humilhá-la, ou magoá-la mesmo, ou dominá-la apenas.

A mão pousou, porque ela sentiu que não desejava nada; e, porque, repentinamente, uma imensa tranquilidade grata era o que latejava afinal em compassado ardor, a mão foi avançando e penetrou os dedos na massa crespa em que o enleou. O cotovelo afrouxou, dormente, no que o corpo se apoiava. E a cabeça, descaindo para a frente, pousou suavemente, acomodando-se, no peito dele.

Entre ambos ficou o braço dele, que ela sentiu esgueirar-se e envolvê-la depois, sem a tocar, de que ficou esperando, contraída e desagradada, que ele fizesse o que fez, percorrer-lhe com as pontas dos dedos a espinha até às ancas, onde a mão se espalmou, aberta, para apertar-lhe logo com força a carne. Então a mão dela avançou mais, roçou com as costas ao longo do sexo, que deu um lento salto, mergulhou nas virilhas, e demorou-se sentindo, nas costas, os movimentos interiores, ora lentos, ora súbitos, dos testículos.

Repentinamente, a mão que, apertada a carne das ancas, ficara pousada e como lá esquecida, levantou-se e, agarrando-a no pescoço, por detrás, fê-la levantar-se e cair deitada, enquanto o tronco e o outro braço vinham sobre ela, e os dentes a mordiam no lábio inferior com uma violência que tentou repelir. Mas logo a sua própria língua lhe embateu nos dentes, que descerrou para que ela viesse encostar-se à outra que, abrindo-lhe os lábios, a buscava.

Jorge de Sena, excerto do conto "Os Amantes" inserto na antologia Antigas e Novas Andanças do Demónio, Edições 70, 1981, p. 201.