quinta-feira, outubro 09, 2008

Don DeLillo


Acordo. O grito ritmado das pombas. Tenho de me concentrar para tomar consciência de onde me encontro. Levanta-te, desperta para o mundo, abre as persianas. No jardim da Escola Inglesa, o apicultor, com o seu capuz de protecção, dirige-se a passo firme para as colmeias artificiais. Tiro do escorredouro a caneca do café e ponho a água a ferver. O Monte Himeto é uma sombra branca, manhãs de Verão, uma extensão nebulosa que se prolonga até ao golfo. Hoje é dia de mercado e anda um homem a correr atrás de pêssegos pela rua íngreme por baixo dos restaurantes em socalco. Uma carrinha de caixa aberta chocou com a dele, atirando uma quantidade de pêssegos pela borda fora, e estes vêm a rolar aos ziguezagues pelo asfalto. O homem está a tentar detê-los, correndo quase rente ao chão e fazendo movimentos circulares com o braço. Debaixo das amoreiras está um rapaz a lavar à mangueirada o chão dos restaurantes. No local onde as carrinhas chocaram continua uma grande gesticulação entre o condutor de um veículo e um amigo do homem que corre todo curvado. Um invólucro de Nescafé, um donut deitado fora. Está a tocar o telefone, o primeiro número errado do dia. Pombas pousando nos topos calmos dos ciprestes. Aparecem os homens do café da esquina, para ver rolar os pêssegos. Inclinam-se cuidadosamente para a rua, avaliando a situação com um ar muito sério, dispostos a não despender muito mais esforço nem gestos. Abelhas domésticas enxameiam na claridade poirenta.
Dirijo-me para o escritório, onde faço outra chávena de café e aguardo que o telex se me dirija.

Don Delillo, Os Nomes, Relógio D'Água, p. 52, (tradução de Maria Manuel Ribeiro)

quarta-feira, setembro 24, 2008

quinta-feira, julho 31, 2008

sábado, maio 31, 2008

Roth (4)


Morreu três semanas depois. Durante uma terrível prova­ção de doze horas, que começou momentos antes da meia­-noite de 24 de Outubro de 1989 e terminou logo após o meio-dia seguinte, lutou por cada sopro de respiração com uma veemência pavorosa, uma derradeira demonstração da tenacidade obstinada de toda a sua vida. Foi digno de se ver.

No início da manhã da sua morte, quando cheguei à sala das urgências do hospital para onde fora rapidamente conduzido do seu quarto, em casa, fui confrontado com um médico de serviço que se preparava para tomar «medidas extraordinárias» e ligá-lo a um ventilador. Sem isso não havia esperança alguma, embora, escusado seria dizê-lo - acrescentou o médico -, a máquina não fosse reverter o avanço do tumor que parecia ter começado a atacar-lhe as funções respiratórias. Informou-me também de que, nos termos da lei, depois de o meu pai ter sido ligado à máquina não seria desligado, a não ser que voltasse a poder respirar autonomamente. Impunha-se uma decisão imediata e, como o meu irmão ainda estava no avião que o trazia de Chicago, essa decisão teria de ser tomada apenas por mim.

E eu, que explicara ao meu pai os termos do testamento da sua vontade quanto ao fim da vida e o levara a assiná-lo, não sabia agora o que fazer. Como podia dizer não à máquina se isso significava que não precisaria de continuar a travar aquela atroz batalha para respirar? Como podia tomar a decisão de pôr fim à vida do meu pai quando a vida é uma coisa que só podemos conhecer uma vez? Longe de invocar os termos do testamento com a sua última vontade, encontrava-me quase à beira de o ignorar e dizer: «Qualquer coisa! Façam qualquer coisa, seja o que for!»

Pedi ao médico que me deixasse sozinho com o meu pai, ou tão sozinho quanto me era possível no meio da azáfama do serviço de urgências. Enquanto ali estava sentado a vê-lo debater-se para continuar a viver, tentei concentrar a minha atenção nos estragos que o tumor já lhe causara. Não era difícil, pois, estendido naquela maca, dava a impressão de que travara um combate de cem rounds com Joe Louis. Pensei no tormento que sem dúvida viria, mesmo que pudesse manter­-se vivo com a ajuda do ventilador. Vi tudo, tudo, e apesar disso tive de ficar ali sentado muito tempo antes de conse­guir inclinar-me o mais possível para ele, com os lábios junto do seu devastado e desfigurado rosto, e encontrar finalmente coragem para murmurar: «Pai, vou ter de deixá-lo partir.» Ha­via horas que ele estava inconsciente e não conseguia ouvir­-me, mas, abalado, surpreso e a chorar, repeti-lhe várias vezes essas palavras até eu próprio acreditar nelas.

Depois só me restou seguir a sua maca para o quarto on­de o puseram e sentar-me ao seu lado. Morrer é trabalho e ele era um trabalhador. Morrer é horrível e o meu pai estava a morrer. Segurei-lhe na mão, que pelo menos ainda dava a sensação de ser a sua mão; afaguei-lhe a testa, que pelo menos ainda parecia a sua testa, e disse-lhe toda a espécie de coisas de que ele já não podia tomar consciência. Felizmente, não lhe disse nada, naquela manhã, que ele já não soubesse.

Nesse dia, mais tarde, o meu irmão encontrou, na gaveta do fundo de uma escrivaninha do quarto do meu pai, uma caixa delgada, contendo dois xailes de oração cuidadosamente dobrados. Deles não se desfizera. A eles não os exilara para o vestiário da Y nem os dera a um dos seus sobrinhos-netos. Levei o tallis mais velho para minha casa e sepultámos o meu pai com o outro. Quando, em casa, o agente funerário nos pediu que escolhêssemos um fato para ele, eu disse ao meu irmão: «Um fato? Ele não vai para o escritório. Não, nada de fato; não faz sentido. Ele seria sepultado envolto numa mortalha, disse eu, a pensar que fora assim que os seus pais tinham sido sepultados e era assim que os judeus eram, tradicionalmente, sepultados. Mas enquanto o dizia perguntei a mim mesmo se uma mortalha seria menos absurda – ele não era ortodoxo e os seus filhos não eram nada religiosos -, se não seria, talvez, pretensiosamente literata e, também, um pouco histericamente santimonial. Pensei que um terráqueo urbano como o meu pai, agente de seguros e homem vigoroso, enraizado durante toda a sua vida no quotidiano comum, destoaria bizarramente envolto numa mortalha, apesar de compreender que a ideia era essa. Mas como ninguém se me opôs, e como me faltou a audácia necessária para dizer «Sepultem-no nu», usámos a mortalha dos nossos antepassados para cobrir o seu cadáver.

Philip Roth, Património, Dom Quixote, 2008, p. 208 (tradução de Fernanda Pinto Rodrigues)


quarta-feira, março 19, 2008