segunda-feira, agosto 22, 2005

sábado, agosto 20, 2005

sexta-feira, agosto 19, 2005

Hammett


No seu quarto, agora living visto que a cama estava levantada, Spade arrumou o chapéu e o casaco de Brigid O’Shaughnessy, instalou-a confortavelmente numa cadeira de baloiço estofada e ligou para o Hotel Belvedere. Cairo não tinha chegado do teatro. Spade deu o seu número e pediu que avisassem Cairo de que devia telefonar-lhe logo que chegasse.

Depois sentou-se na cadeira de braços ao lado da mesa e sem qualquer preâmbulo, assim de chofre, começou a contar à rapariga uma coisa que tinha acontecido há anos no Noroeste. Falava numa voz tipo «vamos ao que importa», sem ênfases nem pausas, embora de vez quando repetisse a mesma frase com pequenas modificações, como se fosse importante que cada pormenor saísse exactamente como tinha acontecido.

Ao princípio, Brigid O'Shaughnessy escutava com pouca atenção, obviamente mais surpreendida com o facto de ele lhe contar uma história do que interessada nela. Parecia mais empenhada em descobrir a razão por que Spade lhe contava a história do que em seguir a história propriamente dita. Mas depois, à medida que a história se desenrolava, começou a interessar-se cada vez mais por ela e acabou por ficar imóvel e absorta.

Um dia, um homem chamado Flitcraft saíra do seu escritório, em Tacoma, para ir almoçar, e nunca mais voltara. Nessa tarde não apareceu para jogar golf às quatro horas, embora tivesse sido ele a combinar o jogo menos de meia hora antes de sair para almoçar. A mulher e os filhos nunca mais o viram. Parecia dar-se muito bem com a mulher. Tinha dois rapazes, um com cinco e o outro com três. Tinha uma casa sua nos arredores de Tacoma, um Packard novo e todos os demais confortos de um americano bem instalado na vida.

Flitcraft tinha herdado do pai setenta mil dólares e, com o seu negócio de bens imobiliários, tinha ganho qualquer coisa como duzentos mil dólares até à altura em que desapareceu. Tinha todos os assuntos em ordem, embora nada indicasse que tinha estado a arrumá-los para poder depois desaparecer. Havia mesmo, por exemplo, um negócio francamente vantajoso que ia fechar-se no dia a seguir àquele em que ele desapareceu. Nada parecia indicar que tivesse consigo mais de cinquenta ou sessenta dólares na altura em que partiu. Nada nos seus antecedentes, tão rotineiros, poderia justificar a suspeita de vícios secretos ou mesmo de que existisse outra mulher na sua vida, embora pudesse sempre ser possível.

«Desapareceu assim», disse Spade, «como um punho fechado quando se abre a mão.»

Quando chegou aqui, tocou o telefone.

«Estou... M. Cairo?... Sim, sou eu. Pode passar aqui - na Post Street - agora? ... Sim, acho que sim.» Olhou para a rapariga, contraiu os lábios e depois disse depressa: «Miss O'Shaughnessy está cá e quer .falar consigo.»

Brigid O'Shaughnessy franziu as sobrancelhas e mexeu-se na cadeira, mas não disse nada.

Spade desligou e disse: «Não tarda aí. Bem, isto passava-se em 1922. Em 1927, estava eu a trabalhar numa das maiores agências de detectives de Seattle. Mrs. Flitcfraft apareceu lá e disse-nos que alguém tinha visto um homem em Spokane muito parecido com o marido. Fui a Spokane. E era mesmo o Flitcraft. Vivia em Spokane há uns poucos de anos como Charles - era o seu primeiro nome - Pierce. Tinha um negócio de automóveis que lhe rendia vinte a vinte e cinco mil dólares por ano, uma mulher, um bebé e uma casa sua nos arredores. Quando estava bom tempo costumava jogar golf depois das quatro da tarde.»

Ninguém lhe tinha dado indicações precisas sobre o que havia de fazer quando encontrasse Flitcraft. Estava a falar com ele no seu quarto no Devenport. Flitcraft não se sentia nada culpado. Tinha deixado a sua primeira família em boa situação económica e o que depois fizera parecia-lhe perfeitamente normal. A única coisa que o preocupava era fazer entender a Spade essa normalidade. Nunca tinha contado a sua história a ninguém anteriormente, o que não o ajudava a tornar clara essa normalidade. Tentava agora pela primeira vez.

«Percebi-o logo», disse Spade a Brigid O'Shaughnessy, «mas Mrs. Flitcraft não. Pensou que ele estava doido. Talvez estivesse. De qualquer maneira acabou tudo em bem. Ela não queria escândalos e além disso, depois da partida que ele lhe tinha pregado - era assim que ela via as coisas - não queria mais nada com ele. Houve portanto um divórcio calmo e o assunto ficou arrumado.

O que lhe aconteceu foi o seguinte: quando ia almoçar, passou por um prédio em construção. Uma viga ou qualquer coisa do género caiu do oitavo ou do décimo andar e veio tombar mesmo ao seu lado, no passeio. Passou-lhe mesmo de raspão, mas não lhe tocou. Houve foi uma pedra do passeio que se partiu, saltou e o feriu na cara. Foi só um arranhão, mas ainda tinha a cicatriz quando o vi. Passava-lhe um dedo por cima - assim, todo contente - a contar-me a história. Apanhou um grande susto, claro, dizia ele, mas ficou mais chocado do que propriamente assustado. Sentiu-se como alguém que tivesse levantado a pálpebra da vida e tivesse resolvido olhar para o que se passava lá dentro.»

Flitcraft tinha sido um bom cidadão e um bom marido e pai, não por qualquer espécie de imposição do exterior, só porque era um homem que sentia mais conforto em caminhar a passo certo ao lado dos outros. Era o que sempre tinha querido. As pessoas que conhecia eram assim. A sua vida era um negócio limpo, arrumado, são, respeitável. E de repente a queda de uma viga tinha-lhe mostrado que a vida, no fundo, não tinha nada a ver com essas coisas. Ele, o bom cidadão-marido-pai podia ser varrido de um momento para o outro entre o escritório e o restaurante pela queda acidental de uma viga. Percebeu então que as pessoas morriam assim ao calha e viviam só enquanto um cego acaso as protegia.

Não era tanto a injustiça do facto que o perturbava: aceitou-a logo a seguir ao primeiro abalo. O que o perturbava era a descoberta de que, a resolver sensatamente todos os seus assuntos, acabara por estar a trocar e não a acertar o passo com a vida. Dizia que ainda não tinha andado vinte passos depois da queda da viga e já sabia que nunca mais teria sossego até conseguir adaptar-se àquela nova imagem da vida que entrevira a brilhar. Enquanto almoçava tinha estado a pensar nas maneiras de se adaptar. A vida podia acabar para ele assim à toa, pela queda de uma viga: ia mudar de vida também à toa, por um simples desaparecimento. Amava a sua família, dizia, tanto como supunha ser costume, mas tinha a certeza que os deixava em bastante boa situação económica e o seu amor por eles não era amor que fizesse doer a ausência.

«Nessa tarde foi para Seattle», continuou Spade, «e de lá apanhou o barco para S. Francisco. Durante uns poucos de anos andou por aqui às voltas e depois acabou por ir parar ao Noroeste, e instalar-se em Spokane, e casar-se. A sua segunda mulher não se parecia com a primeira mas, mesmo assim, eram mais parecidas do que diferentes. Está a ver, o género de mulheres que jogam bons jogos de golf e bridge e gostam de novas receitas de saladas. Não estava arrependido do que tinha feito. Parecia-lhe perfeitamente normal. Acho que nem se chegou a aperceber de que tinha acabado naturalmente por mergulhar no mesmo tipo de rotina de que tinha saído em Tacoma. Mas é essa a parte da história de que eu sempre gostei. Ele adaptou-se ao facto de as vigas caírem; depois, não caiu mais nenhuma e ele adaptou-se ao facto de não caírem.»

«Perfeitamente fascinante», disse Brigid O'Shaughnessy. Levantou-se da cadeira e ficou de pé mesmo em frente dele. Olhos muito abertos num olhar profundo. «Não preciso de lhe dizer até que ponto me prejudicará definitivamente se escolher o partido de Cairo quando ele chegar.»

Spade sorriu levemente sem abrir os lábios. «Não precisa de me dizer, não», concordou.

Dashiell Hammett, O Falcão de Malta, A Regra do Jogo Edições, 1980, (tradução de Helena Domingos), p. 63.

quarta-feira, agosto 17, 2005

Rilke



Mas a ti, que eu conhecia, a ti quero agora
como a uma flor de que nem sei o nome,
lembrar mais uma vez pra te mostrar aos outros,
roubada, bela amiga do invencível grito.

Bailarina primeiro, que súbito o hesitante
corpo deteve, como a juventude em bronze
fundida; de luto, à escuta. - Do alto
cai música no alterado coração.

A doença era perto. Preso já das sombras,
o escuro sangue impelia; mas, suspeitado
de leve, jorrou em primavera natural.

Sempre e sempre, de sombra e queda interrompido,
brilhou terrestre. Até que após tremendo golpe
entrou na porta sem consolo aberta.

Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu (XXV - Primeira Parte), Edições ASA (tradução de Paulo Quintela)

segunda-feira, agosto 15, 2005

Durrell (releituras de verão)


"Ela range os dentes no sono; quando acorda ao amanhecer um olhar de fogo claro, como uma lâmpada de sódio. Nua e fora do seu casulo tomo a ninfa nos braços, tirando um bilhete branco na lotaria do amor. Um doutor em literatura como olhos de betão. A suave maquinaria da psicoconversa. Passeio nos jardins públicos como uma lebre tinhosa. Gordos traseiros esquivos de mamãs e carrinhos de criança. Nas montras das lojas olho ansiosamente para a minha própria beleza - mas tudo o que vejo é um homenzarrão inchado que sofre obviamente de hemorróidas, afundado no seu sobretudo como um pato-americano. Ouvi falar de um velho artista que montou o crânio da amante sobre uma almofada de veludo com jóias a servir de olhos.
É de noite agora, noite fechada, e o meu crânio está cheio de resmungos cinzentos."

Lawrence Durrell, Monsieur ou o Príncipe das Trevas, Difel (tradução de Daniel Gonçalves), p. 195.

domingo, agosto 14, 2005

sexta-feira, agosto 05, 2005

quinta-feira, agosto 04, 2005

Home, sweet home.

Vian



"Amadis Dudu seguia sem convicção nenhuma pela estreita viela que representava o atalho mais longo para se chegar à paragem do autocarro 975. Todos os dias tinha de apresentar três bilhetes e meio, pois descia, com o autocarro em andamento, antes da paragem; tacteou o bolso do colete para ver se ainda tinha algum bilhete. Tinha. Viu um pássaro empoleirado num monte de lixo, a bicar em três latas de conserva vazias, o que conseguia reproduzir o início dos Barqueiros do Volga; parou, mas o pássaro deu uma fífia e, furioso, levantou voo, resmungando, entre bico, umas obscenidades à pássaro. Amadis Dudu retomou o caminho, cantando o resto da música; mas deu também uma fífia e começou a praguejar."

Boris Vian, O Outono em Pequim, Livos Unibolso (tradução de Luiza Neto Jorge), p. 7.

Roth



"No sábado fomos até ao lago Champlain, parando pelo caminho para a Macaca tirar fotografias com a sua Minox; ao fim do dia fizemos um desvio por Woodstock, passando o trajecto a embasbacar-nos, a soltar exclamações e suspiros. De manhã (num baldio à beira do lago) tivemos relações sexuais, e depois à tarde, numa estrada de terra batida algures nas montanhas do Vermont Central, ela disse: «Oh Alex, encosta, encosta já - quero que te venhas na minha boca», e de facto chupou-me a pissa, e de cabeça para baixo!
O que é que eu estou a tentar comunicar? Simplesmente que começámos a sentir alguma coisa. A sentir sentimentos! E sem a menor diminuição do apetite sexual!
«Sei um poema», disse eu, falando quase como se estivesse bêbedo, bêbedo e capaz de vencer qualquer homem que me aparecesse pela frente, «e vou recitá-lo.»
Ela estava aninhada no meu colo, ainda de olhos fechados, com o meu membro já mole encostado à cara como um pintainho.«Ah, vá lá», resmungou, «agora não, eu não percebo nada de poemas.»
«Este vais perceber. É sobre uma foda. Um cisne fode uma linda rapariga.»
Ela ergueu os olhos, fitando-me por entre as pestanas postiças. «Essa é boa.»
«Mas é um poema sério.»
«Bom», disse ela, lambendo-me o pirilau, «o delito, pelo menos, é sério.»
«Oh, que irresistíveis e espirituosas sãos as beldades sulistas - especialmente as assim esbeltas como tu.»
«Deixa-te de tretas, Portnoy. Recita mas é o poema ordinário.»
«Porte-noir», disse eu, e comecei:

«Repentino golpe: batendo inda as grandes asas
Sobre a rapariga vacilante, negras patas
A afagar-lhe as coxas, presa no bico a nuca,
Aperta contra o seu peito o peito fraco.»

«Onde é que tu foste aprender», perguntou ela, «uma coisa dessas?»
«Chiu. Ainda há mais:»

«Como afastarão aterrados os dedos frouxos
Das coxas desfalecidas o explendor das penas?»

«Hei!», exclamou ela. «Coxas!»

«E como não sentirá o corpo, esmagado pelo branco ardor,
Pulsar onde pulsa o coração do estranho?
Um estremeção dos rins ali engendra
A muralha em ruínas, o tecto e a torre em chamas
E Agamémnon morto.
Tão dominada,
Tão presa do sangue animal dos ares,
Pôde ela dele tomar saber e força
Antes que a largasse o bico indiferente?»

«Pronto, acabou-se», disse eu."

Philip Roth, O Complexo de Portnoy, Bertrand Editora 1994, (tradução de Ana Luísa Faria), p. 205.

quarta-feira, agosto 03, 2005

Yeats




A sudden blow: the great wings beating still
Above the staggering girl, her thighs caressed

By his dark webs, her nape caught in his bill,
He holds her helpless breast upon his breast.


How can those terrified vague fingers push
The feathered glory from her loosening thighs?
How can anybody, laid in that white rush,
But feel the strange heart beating where it lies?

A shudder in the loins, engenders there
The broken wall, the burning roof and tower
And Agamemnon dead.


Being so caught up,
So mastered by the brute blood of the air,

Did she put on his knowledge with his power

Before the indifferent beak could let her drop?


William Butler Yeats, Leda and the swan

terça-feira, agosto 02, 2005

Reich



«Em 1929, fui com a minha mulher visitar Wilhelm Reich. Lo, a minha mulher, roía as unhas e eu achava isso horrível. Falei no assunto com uns amigos do Partido, que me disseram: "Temos um psicanalista no Partido. A psicanálise não é só para os ricos, é também para os pobres. Vai visitá-lo, chama-se Wilhelm Reich". Fomos. Só tinha móveis do Bauhaus e começou a fazer-nos perguntas sobre a escola e o que lá fazíamos. Depois, ao fim de uns momentos, perguntou-nos a razão da nossa ida. Mostro-lhe as mãos de Lo: "Olhe, não é horrível?" Volta-se para Lo e pergunta-lhe em que é que ela trabalha. "Estou no Bauhaus, na oficina de metais". "Ah, não está em contacto com o público, não é secretária de um director que poderia incomodar-se com isso?" "Não!" "Oiça, coma as suas unhas tranquilamente, que isso passa por si só.»
Entrevista com Albert Flocon, Berlim, 1919-1933, Terramar, Colecção Memórias, p.223.

segunda-feira, agosto 01, 2005

Chatwin


«Aquele que não viaja não conhece o valor dos homens», disse Ibne Batuta, o infatigável viajante árabe, que foi dar uma volta à China e voltou, só pelo prazer. Mas a viagem não se limita a expandir a mente. Faz a mente. As nossas primeiras explorações são a matéria-prima da inteligência e, no dia em que escrevo isto, os organismos oficiais concluíram que as crianças presas em andares altos correm o risco de ficar mentalmente retardadas. Porque é que nunca ninguém pensou nisso?"
Bruce Chatwin, Anatomia da Errância, Quetzal Editores Lisboa/1997.