terça-feira, janeiro 30, 2007

Eugénio de Andrade



EXCESSIVO É SER JOVEM

E porque me succedeo em lugar de patria
a Cidade de Coimbra, onde gastei a flor
de minha adolescecia...

FREI AMADOR ARRAIS, Diálogo X


Como toda a gente, também eu passei por Coimbra. Foi há vinte e cinco anos, pouco mais ou menos. O mundo estava então em guerra, e foi a guerra, feitas bem as contas, que para lá me empurrou. Uma tarde eu descia o Chiado com uns amigos. Outros subiam com garrafas de champanhe nas mãos: os alemães estavam às portas de Moscovo. Interpelaram-nos; primeiro apenas com certa ligeireza, depois com mal disfarçada insolência. Não queríamos beber pela sua vitória? Não, não queríamos beber; o que queríamos era que nos deixassem em paz. Tínhamos a certeza? Ainda havíamos de nos arrepender! Era bem possível! Daí a algum tempo partia para Coimbra. Coimbra é um modo de dizer - a quinta dos meus amigos ficava a uns seis quilómetros da cidade. Mete-se por Santa Clara, Lajes, Conraria. Aqui, quem tiver olhos na cara fica deslumbrado. Olhando à direita, avista-se a Casa das Lapas, «alcandorada sobre um abismo surpreendente de mágica e de cujos terraços se domina todo o fértil e risonho vale do Ceira». As referências são de Eugénio de Castro e correm impressas no seu Guia de Coimbra. Ele frequentara muito a casa, e ouvi dizer que nas paredes escrevera alguns ditirambos a Baco. É coisa que não posso confirmar - a quinta mudara há pouco tempo de dono, e quando ali cheguei já as paredes da casa haviam sido caiadas. Contudo estou em pensar que, com o tradicional amor às coisas do espírito que por toda a parte se manifesta entre nós, os decassílabos, ou lá o que era, não se devem ter perdido - certamente, antes da caiadela, algum trolha os trasladou carinhosamente para o seu álbum. Pelo vale, realmente fértil, como disse o outro, corre o Ceira: uma faixinha de água, liricamente debruada de choupos e amieiros, que não tarda em entrar no Mondego. Ao fundo, o monte do Senhor da Serra e, mais longe, entre lilás e violeta, a serra da Lousã. Duas vezes por dia, no meio daquele verde todo, dando serventia a duas ou três casas que por ali havia, passava um comboinho, que quase se desfazia ao apitar. Os terraços da casa precipitavam-se no abismo quase a prumo, e entre as fragas rompia uma vegetação áspera, em tufos. Ao entardecer, avistava-se às vezes, a sair duma loca, uma raposa, que logo desaparecia entre as giestas e as urzes; e os milhafres pairavam sereninhos. Por detrás da casa, os pinheiros, os eucaliptos e as acácias eram um imenso leque aberto. E à roda, um silêncio maior que o mundo. Só a música podia, medir-se com um silêncio assim; mas não toda: justamente a música da água ou a de Mozart, a música da terra ou a de Bach. Era uma alegria antiga que se repetia, embora em rigor nunca fosse igual, este crescer, este subir, este fluir - pois para que serviria a música, se não nos levasse nas suas pequenas e sucessivas vagas ao tempo orvalhado e sem mácula? É Edwin Fischer que toca, e talvez nunca ninguém, excepto o próprio Mozart, tenha tocado melhor o Concerto em Ré Menor. Estendo-me na terra: um resto de calor ou a paixão atormentada do allegro invade-me o corpo. É um mal sem remédio, este lamento que não cessa - e começo a ansiar pela romanza. Que espero eu? A carícia da luz, o aroma do amor - eis o que espero naquela cantilena que será escassa de tão breve, pois no meio da mais flagrante transparência irrompe, uma vez mais, a angústia e o terror. O andante transforma-se subitamente em presto, e o piano continuará sozinho, desamparado, a procurar um paraíso que apenas entrevira. O final não apaziguava a minha nostalgia, apesar dos galantes compassos da coda - é que eu sabia que a solidão passara sobre a terra. E era amarga.
Penso em Coimbra e é este o rumor que me chega: um amanhecer de pássaros, o coaxar das rãs pela noite fora. Entre uma coisa e outra, os noticiários da B.B.C., os quartetos de Beethoven, a comovida e tão desenganada poesia de Oliveira Martins, e as discussões intermináveis, só possíveis quando a juventude é excessiva, e não nos cabe nas mãos um tal ardor. Era a ferocidade brutinha, a nossa guerra pessoal, este demónio da negação instalado no corpo, e tudo servia de pretexto: um verso de Ungaretti, a cor dum seixo, um desenho de Matisse. Havia também as lições de matemática (com poemas de Neruda e Maiakovski à mistura) com o Joaquim Namorado, três vezes por semana. Às nove da manhã batia-lhe à porta, e às vezes ficava o resto do dia na cidade. Dava então um salto ao consultório do Miguel Torga ou procurava o Eduardo Lourenço ou o Carlos de Oliveira. Eram os meus amigos de Coimbra. E havia ainda o David. Lá estava ele à minha espera, à saída da ponte, com os últimos discos que recebera de Lisboa.
- Vamos? Quem é que toca o Brahms? Há ali uma canforeira, anda ver. A primeira vez que vim a Coimbra, o Torga trouxe-me a este jardim, atravessou o canteiro e foi colher uma flor para me dar. Foi por essa flor que comecei a querer-lhe bem. Foi ele que me levou a ler o Oliveira Martins. Tens de começar a lê-lo: o primeiro encontro com este homem é uma fascinação. Algumas das páginas que escreveu sobre o Duque de Coimbra são lindíssimas. O Oliveira Martins tem um fraco por D. Pedro; eu também. Sabes qual é a divisa dele? Desyr. Uma só palavra, que naquele tempo, quando se não era nobre, conviria dizer em segredo, atravessou noites e noites da mais espessa retórica para ser agora a razão mesma, ou o poema, da nossa juventude.
Désir. À mon seul déslr... Lembras-te do juramento que fizeram, ele e o Conde de Avranches, ali na Igreja de Sant'lago? Vamos até lá? «Conde, sabei que eu sinto já a minha alma aborrecida de viver neste corpo, e desejosa de se sair de suas paixões e tristezas. Pois que as coisas me não obedecem, determino morrer e acabar inteiro, e não em pedaços. Pela criação que vos fiz, pela irmandade que comigo mereceste ter na santa e honrada Ordem da Jarreteira, e principalmente pela vossa bondade e esforço, quero saber se no dia em que deste mundo me partir, quereis também ser meu companheiro?» Lembras-te da resposta do Conde? «Sou muito contente ter-vos essa companhia na morte, assim como vo-la tive na vida; e se Deus ordenar que do mundo vossa alma se parta, sede certo que a minha seguirá logo a vossa; e se as almas no outro mundo podem receber serviço umas das outras, a minha nesse dia irá acompanhar e servir para sempre a vossa...» Só em Shakespeare é que há coisas assim, não é verdade, David? É estranho: como é que uma paisagem cheia de graça e doçura, feita para o oiro fulvo das abelhas, pode ter sido cenário de tanto e desvairado amor? Pedro, que abriu os olhos a esta luz primeira; por aqui endoideceu de paixão. O Infante D. João, por sinal filho de Pedro e de Inês, levou a exasperação do amor à raiz da carne (a expressão é de Frei Luís de Sousa), e aqui assassinou a formosa Maria Teles - uma punhalada no seio e outra nas virilhas. Com mais razões que Francesca, ela poderia ter dito E 'l modo ancor m'offende. Quanto ao Infante D. Pedro e ao Álvaro Vaz, convenhamos que mesmo entre gente de Cavalaria não são frequentes mortes assim: - «ó corpo, já sinto que não podes mais, e tu minha alma já tardas...» Em que estás a pensar, David? Vamos então ouvir o Brahms? Nesta paisagem de écloga quinhentista, não houve engano de alma ou memória de alegria que não acabassem em puro desespero. Alma asómate ahora a la ventana: j'ai tant rêvé de toi que tu perds ta realité! Amor de mis entrañas, viva muerte, amor ch'a nullo amato amar perdona, que quero eu ganhar que ser perdido? S'un'anima in due corpi é fatta eterna, direi ditosa ou triste a dura sorte? For as the sun is daily new and old, so is my love still telling what is told... E se fôssemos a Celas? Imagina que o claustro e parte do convento, no fim do século dezanove, foram postos em leilão por um conto de reis! E se calhar ninguém lhe pegou. As providências que o Governo tomava, conta o Ramalho, era serrar os capitéis e recolhê-los num museu. Que massacre! Aqueles capitéis, cada um deles merecedor de um poema, como belas cabeças decapitadas, atirados para o canto de qualquer pátio húmido, servindo de suporte a alguns vasos de sardinheiras... E a propósito de poemas: escrevi um há dias; por reacção ao dark god do Lawrence foi de um green god que falei. São mais uns versos que fico a dever às águas deste rio que a Eufrosina queria descer, levando o seu cravo por única companhia. Que levaríamos nós, se partíssemos juntos? Foi Nietzsche que falou da fatalidade da música como de uma ferida aberta. Nesta cidade, só tu e eu devemos sofrer deste mal - estamos ambos despertos; ambos crescemos violentamente para o nosso ser; ambos temos consciência de que os nossos acordes mais profundos obedecem a uma lei que concilia o entusiasmo mais glorioso com a mais dura disciplina; e não há em nós lugar senão para a alegria de dar testemunho na terra do esplendor mortal dos dias. Quando procurava outra palavra para dizer música, Nietzsche encontrava apenas Veneza. E nós? Alguma vez a palavra música nos virá aos lábios ao pensarmos em Coimbra? É certo: na terminologia de Unamuno, também esta paisagem é mais musical que pictórica. Mas não era disso que eu estava a falar. Uma paisagem assim é mesmo um perigo público - dizem-na poética, e consagram-lhe sonetos. Ora a poesia é inimiga do poético. Os letrados que por aqui passaram quase sempre se esqueceram disso; o resultado é não haver outra cidade sobre a qual se tenham despejado tantos e tão maus versos. Debaixo de tal entulho, custa a descobrir qualquer coisa em que o espírito não tenha abandonado o corpo, e respire. Não espanta que por aqui a poesia tenha escolhido a prosa para habitação. Queres vir almoçar comigo amanhã? Pedirei à Nelmi que faça cannelloni - ela garante que ninguém os faz melhor em Florença. Quando chegares à Quinta da Várzea não te esqueças de olhar à direita: o jacarandá está florido, e um jacarandá em flor é das coisas mais formosas de ver! Quando tiver dinheiro hei-de comprar os Quintetos para cordas, de Mozart. Ouvi ontem o K.614, que ele escreveu uns meses antes de morrer. Porque também para o Mozart houve morte, caríssimo! E se Mozart morreu, como poderão os meus amigos ser imortais? O Aires, a Nelmi, o Armando, a Matilde, o Célio, todos morrerão, e eu com eles a cada instante. Mesmo tu, David, acabarás também por morrer; as cordas deixarão de soar; uma poeira muito fina poisará docemente, docemente poisará na tua harpa, para sempre. Ecco, siamo arrivati. Não faças cerimónia comigo...
- Entra, Eugénio.

São Lázaro, Junho, 1970

Eugénio de Andrade, in Duas Cidades – Antologia sobre o Porto e Coimbra, Editorial Inova Limitada, p. 47.

sábado, janeiro 27, 2007

Bill Evans - Waltz For Debby

Live recordings from Stockholm (1964)

Chuck Israels on bass and Larry Bunker on drums

domingo, janeiro 21, 2007

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Evelyn Waugh




No dia seguinte, o vento tinha amainado e nós balouçávamos de novo ao ritmo da ondulação. Falava-se menos agora de enjoos do que de ossos partidos; pessoas tinham caído durante a noite, e deram-se vários acidentes desagradáveis nos soalhos das casas de banho.

Nesse dia, porque tínhamos falado muito no dia anterior e porque o que tínhamos a dizer precisava de poucas palavras, falá­mos pouco. Lemos; Julia descobriu um jogo de que gostava. Quando ao cabo de longos silêncios falámos, vimos que os nossos pensamentos tinham andado a par.

«Tens estado a guardar a tua tristeza», disse eu.

«Foi tudo o que ganhei. Disseste ontem. É a minha recompensa.»

«É uma paga da vida. Uma promessa pagável à vista.»

A chuva parou ao meio-dia; à tarde, as nuvens dispersaram-se, e o Sol, atrás de nós, entrou subitamente no salão onde estávamos sentados, ofuscando todas as luzes.

«O pôr do Sol», disse Julia, «O fim do nosso dia.»

Levantou-se e, apesar de o balanço do navio parecer não ter fim, levou-me para o convés. Enfiou o braço no meu e a mão na minha, dentro do bolso do meu sobretudo. O convés estava seco e vazio, varrido apenas pelo vento da deslocação do navio. Quando parávamos, no laborioso caminho em frente, longe da fuligem voadora da chaminé, éramos alternadamente empurrados um con­tra o outro, depois puxados com força, quase separados, braços e dedos entrelaçados quando segurava a amurada e Julia se agarra­va a mim, juntos novamente, logo afastados; depois, num balanço maior do que os outros, encontrei-me atirado contra ela, apertan­do-a contra a amurada, afastando-me dela mas prendendo-a entre os meus dois braços de cada um dos lados, e o navio estabilizou no fim da descida como que a arranjar força para a subida, e ficá­mos assim abraçados, ao ar livre, rosto contra rosto, o seu cabelo esvoaçando e tapando-me os olhos; o horizonte escuro de água em torrente, brilhante agora com o oiro do pôr do Sol, continuava por detrás de nós, depois começou a descer até que consegui ver através do cabelo negro de Julia um amplo céu dourado, e ela foi atirada contra o meu coração, segura pelas minhas mãos à amu­rada, o seu rosto ainda apertado contra o meu.

Nesse minuto, com os lábios de encontro ao meu ouvido, e a respiração quente no vento salgado, Julia disse, embora eu não tivesse falado, «sim, agora», e quando o barco se endireitou e começou a navegar em águas mais tranquilas, Julia levou-me para baixo.

Não era tempo para doçuras de luxúria; elas viriam, na devida altura, com as andorinhas e as flores da tília. Agora sobre a água rude devia observar-se uma formalidade, mais nada. Era como se uma cedência dos seus rins tivesse sido combinada. Eu fazia a minha primeira entrada como precursor de uma propriedade que gozaria e desenvolveria à vontade.

Nessa noite jantámos na parte de cima do navio, no restau­rante, e através das janelas as estrelas saíram e passaram pelo céu como uma vez, lembrei, as vira passar sobre as torres e espigões de Oxford. Os criados prometeram que na noite seguinte a orquestra tocaria de novo e que a sala se encheria. Era melhor reservarmos agora, disseram, se queríamos uma boa mesa.

«Oh querido», disse Julia, «como nos podemos esconder com bom tempo, nós, órfãos da tempestade?»

Nessa noite não consegui deixá-la, mas na manhã seguinte, cedo, quando mais uma vez fazia o caminho de regresso pelo corredor, descobri que conseguia andar sem dificuldade; o navio navegava facilmente sobre um mar calmo, e percebi que a nossa solidão tinha terminado.

Evelyn Waugh, Reviver o Passado em Brideshead, Moraes, 1983, p. 246 (tradução de Ana Maria Rabaça)

terça-feira, janeiro 16, 2007

sábado, janeiro 06, 2007

Leopoldo M. Panero


O lamento de José de Arimateia

Não suporto a voz humana,
mulher, tapa os gritos do
mercado e que não chegue
até nós a memória do
filho que nasceu do teu ventre.

Não há outra coroa de
espinhos
que as recordações
que se cravam na carne
e fazem uivar como
uivavam

no Gólgota os dois ladrões.


Mulher,
não te ajoelhes mais ante
o teu filho morto.
Beija-me os lábios
como nunca fizeste
e esquece o nome
maldito
de Jesus Cristo.

Dança na neve
mulher maldita
dança até que teus pés
descalços sangrem,
o Sabbath começou

e nas casas tranquilas
dos homens
há muitos mais lobos
que aqui.
Depois de dançar toca

a neve: verás que é boa

e que não queima tuas mãos

como a fogueira

em que tanta beleza
arderá um dia.

Partindo dos pés

até chegar ao sexo
e arrasando os seios

e chamuscando o cabelo

com um rangido como o de
moscas ao estalar na

vela.
Assim arderá o teu corpo
e do Sabbath restará
apenas uma lágrima
e o teu uivo.

Leopoldo María Panero, Poemas do manicómio de Mondragón, Alma Azul, 2003, pag. 53 (tradução de Jorge Melícias)

Alain Magallon