terça-feira, agosto 29, 2006

Tom Wolfe


John Carter nomeou Noyce director-geral de toda a divisão, a Fairchild Semiconductor, que se tornara subitamente um dos novos empreendimentos mais falados do mundo empresarial. A NASA escolheu os circuitos integrados de Noyce para os primeiros computadores que os astronautas utilizariam a bordo das suas naves (no programa Gemini). Depois disso, começaram a chover as encomendas. Em dez anos, as vendas da Fairchild aumentaram de uns poucos milhares de dólares por ano para 130 milhões e o número de empre­gados cresceu do primitivo grupo de duendes para doze mil. Como director­-geral, Noyce teria agora de se haver com uma questão que Shockley abordara prematura e desajeitadamente, a saber, a de novas técnicas de gestão para esta nova indústria.

Um dia John Carter veio a Mountain View para ver de perto a empresa de semicondutores de Noyce. O escritório de Carter em Syosset, Long Island, pôs-lhe uma limusina com condutor às ordens durante a sua estadia na Califórnia. Por conseguinte, John Carter chegou ao barracão de cimento tilt-up de Mountain View no banco de trás de uma limusina Cadillac preta com um condutor à frente envergando uma farda de motorista completa: fato preto, camisa branca, laço preto e boné preto. Isso só por si bastou para fazer voltar cabeças na Fairchild Semiconductor. Nunca ninguém tinha ali visto uma limusina e um motorista. Não foi isso, porém, que gravou o dia na memória de todos. Foi o facto de o motorista ficar lá fora durante quase oito horas, sem fazer nada. Ficou lá fora com a sua farda, com o seu boné posto, no assento da frente da limusina, sem fazer nada a não ser esperar por um homem que estava algures lá dentro. John Carter estava lá dentro a divertir-se à grande como director executivo. Visitou as instalações, fez reuniões, examinou números, assentiu de satisfação e irradiou o seu urbano encanto de Director Executivo Prodígio da Rua Cinquenta e Sete. E o motorista passou todo o dia sentado lá fora em­brenhado na tarefa de suportar um boné com a cabeça. As pessoas começaram a abandonar as bancadas de trabalho e a assomar às janelas da frente só para darem uma vista de olhos àquele fenómeno, tão insólito ele se afigurava. Eis ali um servo que não fazia nada o dia inteiro a não ser esperar à porta a fim de estar imediatamente às ordens dos quadris do seu amo, quando quer que aque­les quadris, a pança e a queixada decidissem reaparecer. Não era simplesmente o facto de aquela pequena espreitadela à alta-roda do meio empresarial ao jeito de Nova lorque ser incomum naquelas colinas castanhas de Santa Clara Valley. É que aquilo parecia terrivelmente mal.

Um certo instinto que Noyce tinha relativamente a esta nova indústria e às pessoas que nela trabalhavam principiou a assumir os contornos de um conceito. As empresas do Leste adoptaram uma filosofia feudal da organização, sem sequer se aperceberem. Havia reis e nobres, como havia vassalos, solda­dos, alabardeiros e servos, com camadas de protocolo e mordomias, tal como o automóvel e o motorista, para simbolizarem superioridade e estabelecerem as linhas de demarcação. Lá no Leste os directores executivos tinham gabinetes forrados a madeira trabalhada, lareiras falsas, escrivaninhas, bergères, livros encadernados a pele e quartos de vestir, como uma suite num solar baronil. A Fairchild Semiconductor precisava de uma estrutura operacional rígida, particularmente neste período de rápido crescimento, mas não precisava de uma estrutura social. Aliás, não poderia haver coisa pior. Noyce apercebeu-se de como detestava o sistema empresarial do Leste de classe e posição, com as suas intermináveis gradações, encimadas pelos directores executivos e vice-presidentes que organizavam a sua vida diária como se fossem uma corte e uma aristo­cracia empresariais. Rejeitava a ideia de uma hierarquia social na Fairchild.

Para além de não ir haver limusinas e motoristas, nem sequer haveria luga­res de estacionamento reservados. O trabalho iniciava-se às 8 da manhã para todos sem excepção e o regime de prioridade para quem chegasse primeiro ao parque de estacionamento aplicar-se-ia a Noyce, Gordon Moore, Jean Hoerni e todos os restantes. «Se chegarem tarde», gostava de dizer Noyce, «terão que estacionar lá para os quintais». E não ia haver gabinetes tipo suite baronil. O armazém embelezado da Charleston Road estava dividido em comparti­mentos de trabalho e umas quantas fiadas de atravancados gabinetes-cubículo. Os cubículos nunca eram beneficiados. A decoração mantinha-se Armazém Embelezado e as portas estavam sempre abertas. Noyce, o administrador prin­cipal, passava metade do tempo no laboratório fosse como fosse, envergando a sua bata branca. Noyce ia para o trabalho de casaco e gravata, mas não tar­dava a despir o casaco e tirar a gravata, e isso era bem aceite a qualquer outra pessoa da empresa. Não existiam quaisquer regras em termos de vestuário, a não ser algumas tácitas. A indumentária devia ser recatada, tanto no sentido social como no sentido moral. Na Fairchild não havia fatos de trespasse às listas e gravatas de xadrez preto e branco. Vestir bem, com elegância, à moda ou de modo a chamar a atenção era um deslize social. Andar mal vestido não era um pecado. A ostentação, sim.

(...)

Para onde quer que fossem, os emigrados da Fairchild levavam consigo a abordagem de Noyce. Não bastava fundar uma empresa; tinha de se criar uma comunidade, uma comunidade na qual não houvesse distinções sociais, a polí­tica era a da prioridade a quem chegasse mais cedo ao parque de estaciona­mento e esperava-se que toda a gente interiorizasse os objectivos comuns.

A atmosfera das novas empresas era tão democrática, que sobressaltava os empresários do Leste. Um prodígio qualquer de cinquenta e cinco anos com a papada a sobressair levemente do colarinho branco F. R. Tipler de largura modificada e gravata de seda de padrão de tear telefonava da GE ou da RCA a dizer: «Daqui fala Harold B. Thatchwaite,» e a secretária de vinte e três anos do outro lado da linha, em Silicon Valley, dizia com uma daquelas vozes loiras do sol e de olhos azul-claro da Califórnia: «É só um momento, Hal, o Jack já o atende.» E, mal ele chegava à Califórnia e se encontrava pela primeira vez com Jack, ei-lo ali, o director executivo em pessoa, com os seus trinta e três anos de idade, sem casaco, sem gravata, apenas com um camisa de xadrez, calças de caqui e um par de mocassins de costuras reviradas do tamanho de cabos de bateria. Evidentemente, os primeiros sons que saíam da boca de Jack eram: «Viva, Hal.»

Estava-se na década de 1960 e as pessoas do Leste ouviam falar imenso dos praticantes de surf da Califórnia, dos ciclistas, dos proprietários de carros mo­dificados e proprietários de carros personalizados da Califórnia, dos hippies e dos manifestantes políticos da Califórnia, e a imagem que tinham era de jovens de jeans e T-shirts que eram descontraídos, espontâneos, impulsivos, emotivos, sensuais, indisciplinados e irritantemente orgulhosos disso. Por conseguinte, estas empresas de semicondutores de Silicon Valley, com os seus directores executivos vestidos como supervisores de acampamento, davam-lhes a ideia de serem as versões empresariais da mesma coisa.

Não podiam estar mais enganados. A nova raça de Silicon Valley vivia para o trabalho. Eram disciplinados ao ponto de ter espasmos nas costas. Trabalha­vam horas a fio e continuavam a trabalhar no fim-de-semana. Deixavam-se empolgar com as suas empresas como dantes acontecera às pessoas nos dias florescentes da indústria automóvel. Em Silicon Valley um jovem engenheiro ia para o trabalho às oito da manhã, trabalhava mesmo durante a hora do almoço, saía da fábrica às seis e meia ou sete, voltava para casa, brincava meia hora com o bebé, jantava com a mulher, ia para a cama com ela, dava-lhe uma penachada rápida e a seguir levantava-se, deixava-a ali às escuras e punha-se a trabalhar à secretária durante duas ou três horas numas «coisitas que tive de trazer para casa».

Também podia sair da fábrica e resolver ir tomar um copo ao Wagon Wheel antes de ir para casa. Todos os anos havia um sítio - o Wagon Wheel, o Chez Yvonne, o Rickey's, o Roundhouse -, onde os elementos daquela esotérica confraria, os jovens de ambos os sexos da indústria dos semicondutores, se dirigiam depois do trabalho para beberem um copo, mexericarem, bazofiarem e trocarem histórias profissionais acerca de flutuações de fase, circuitos-fan­tasma, memórias de bolha, sequências de fase, contactos antichoque, burst modes, comprovações selectivas por saltos, junções p-n, modos de doença do sono, episódios de morte lenta, RAMs, NAKs, MOSes, PCMs, programadores de PROMs e teramagnitudes, o que queria dizer múltiplos de um milhão de milhões. Por conseguinte não chegava a casa antes das nove, o bebé já estava a dormir, o jantar estava frio e a mulher gélida e ele ficava para ali especado com as mãos em concha como se estivesse a fazer uma bola de neve imaginária e tentava explicar-lhe tudo... enquanto o seu espírito enveredava por outros temas, LSIs, VLSIs, fluxo alfa, de-resolução, polarizações directas, sinais para­sitas e aquela sujeitinha terasexy da Signetics que tinha conhecido no Wagon Wheel, que entendia essas coisas.

Não era grande modo de vida para os casamentos. Nos finais dos anos 1960 a taxa de divórcios parecia tão elevada à gente do ramo como a das cida­des de crescimento-relâmpago da NASA, Cocoa Beach, na Florida, e Clear Lake, no Texas, onde outros jovens engenheiros se entregavam a uma nova tecnologia como se fosse uma missão religiosa. Da segunda vez tinham ten­dência para os «intramatrimónios». Casavam com mulheres que trabalhavam em empresas de Silicon Valley e que haviam de compreender e até aprender a viver com as suas obsessões de vinte e quatro horas. Em Silicon Valley um engenheiro estava sob pressão para reinventar o circuito integrado de seis em seis meses. Em 1959 o invento de Noyce tinha possibilitado a colocação de todo um circuito eléctrico num chip de silício do tamanho de uma unha. Em 1964 tinha de se saber como colocar dez circuitos num chip desse tamanho só para entrar no jogo, e a parada estava continuamente a subir. Daí a seis anos o número era de um milhar de circuitos num único chip; daí a outros seis se­riam trinta e dois mil... e toda a gente dizia que a verdadeira lança em África seriam sessenta e quatro mil.

Tom Wolfe, Hooking Up, Um Mundo Americano, Publicações Dom Quixote (2001), p. 40 (tradução de J. Teixeira de Aguilar)

segunda-feira, agosto 28, 2006