sexta-feira, julho 21, 2006

Barry Guifford



A História de Reader

- Alguma vez viste aquele filme do Errol Flynn, Objectivo Burma? - perguntou Sailor.

Lula estava sentada numa cadeira a pintar as unhas dos pés.

- Que me lembre, não - respondeu.

- Durante a Segunda Guerra Mundial - disse Sai­lor. - Flynn e um grupo de soldados tão a preparar-se para saltar de pára-quedas em plena selva, perto de Man­dalay ou coisa parecida e um dos tipos pergunta a Flynn: «e se o meu pára-quedas não abrir?» E o Flynn responde: «Bem, nesse caso, és o primeiro a chegar ao chão».

Lula deu uma gargalhada. - Ele era muito giro ­disse ela -, apesar de ter bigode! Nunca fui ligada em barbas e bigodes, a não ser que um tipo seja tão feio que a barba sirva p'ra lhe tapar a cara toda.

Sailor levantou-se da cama e começou a vestir-se.

- Vamos comer qualquer coisa, amendoim - disse. - Tou pronto.

- Primeiro, as unhas têm de secar, Sailor. Conta­-me uma história enquanto esperamos.

- Que tipo de história, querida?

- Qualquer coisa que tu contes me interessa - res­pondeu Lula. - Tu sabes.

- Tu, realmente, és tão gira que és um perigo, querida - disse Sailor. - Tenho de o admitir.

Lula deu uma risadinha e estendeu-se na cama, dei­xando os pés pendurados para fora.

Sailor sentou-se numa cadeira ao pé da janela. Via nitidamente as ondas de calor a espraiarem-se pela rua abaixo.

- Lá em Pee Dee conheci um gajo chamado Rea­der O'Day - disse ele. - O gajo foi dentro, porque apagou a tipa com quem vivia. Apanhou dezassete anos por homicídio de 2º grau.

- Que raio de nome é esse? Reader? [1]- pergun­tou Lula.

- Puseram-lhe esta alcunha porque lê à brava. Que me lembre, nunca cheguei a saber qual era o seu nome de baptismo. Tá sempre a ler livros que a família lhe manda. Ele andou na Universidade. E agora, com qua­renta e sete anos, ainda lê livros.

- É espantoso - disse Lula. - Quer dizer, deve ser muito raro num criminoso.

- Durante muito tempo andou a ler livros dum gajo francês que já morreu. Disse-me que todos os livros daquele gajo eram partes dum mesmo livro, chamado Rememberin'Things Past.[2] Parece-me que era este o título. O que é giro, é que segundo o Reader, o autor teve a ideia p'ra escrever aquilo tudo, quando tava a comer um biscoito.

- Um biscoito?

- Pois. O tal francês tava a comer um biscoito e uma porrada de lembranças inundou-lhe o cérebro e então ele escreveu-as. O Reader contou-me que ele tava bas­tante doente e que esteve sempre a escrever até morrer, mesmo até ao último momento.

- Porque é que o Reader aviou a patroa? - per­guntou ela.

Sailor abanou a cabeça e soltou um assobio baixi­nho, por entre os dentes.

- Isso é uma história do caraças - disse ele. ­

Parece que tinham uma filha que não se dava bem com a mãe e o Reader foi aguentando a mulher por causa da miúda. Dizia ele que a gaja era muito chata com a filha e com ele também. Contou-me que uma vez ela o atacou com um ferro de engomar que tava muito quente e dou­tra vez, com uma moto-serra.

- Parece um daqueles filmes que eu nem vou ver - disse Lula.

- O Reader achou que devia ficar com ela para pro­teger a filha. Durante algum tempo viveram perto de Mor­gan City e ele trabalhou nos campos de petróleo. Quando o negócio do petróleo ficou de pantanas, mudou-se para o Piedmont e trabalhou no tabaco. A gaja trabalhava de vez em quando, como servente de hospital. O Reader dizia que ela era do piorio em Alabama e que ele se tinha juntado com ela numa altura em que andava também um bocado por baixo. No entanto, depois da filha nascer, ele resolveu mudar de vida.

- Ele devia ser de boas famílias? - perguntou Lula. - Afinal de contas, andou na Universidade.

- Parece-me que ele disse que o pai era médico - disse Sailor. - O mais certo era ele ser um desapon­tamento p'rá família, andando por aí, nos campos do petróleo e fazendo trabalhos que qualquer borra-botas pode fazer. Seja como for, a patroa continuou a cha­teá-lo p'ra ele casar com ela, p'rá filha ficar legítima. O Reader não queria ficar amarrado à gaja e disse-lhe que só tava com ela por causa da miúda. Acho que durante uns tempos as coisas tiveram assim, ela a moer-lhe o juízo p'ra se casarem e ele a recusar. Um dia, quando a filha, que nessa altura tinha dez anos, tava na escola ou noutro sítio qualquer, a gaja veio ter com ele com uma espingarda e ameaçou que o matava se ele não casasse com ela. Quando ele a mandou bugiar, ela disparou e quase que lhe acertou. Ele diz que a bala passou a rasar a ore­lha esquerda e se foi enfiar na parede por trás dele. Então ele tirou-lhe a espingarda e perdeu a cabeça.

- Não me digas que disparou contra ela?! - disse Lula.

- Cinco ou seis vezes - respondeu Sailor. – Acho que ele tava tão furioso que ficou ali, a olhar p'ra ela e a disparar até já não ter balas. E foi então que ele fez uma grande asneira.

- Como se enfiar meia-dúzia de balázios na dama não fosse já asneira suficiente - disse Lula.

- Em vez de chamar a polícia e alegar legítima defesa ou homicídio justificável por ter sido levado até à loucura - continuou Sailor -, embrulhou o corpo na cortina do chuveiro e enterrou-o debaixo da casa.

- O que é que ele disse à filha?

- Disse-lhe que a mãe tinha ido de férias, ou qual­quer coisa no género. Deixou a miúda com uns parentes e desandou. Foi p'ra Nova Yorque, Chicago, Las Vegas, p'ra todo o lado. Foi apanhado quando resolveu voltar, p'ra ver a filha.

- Como é que a polícia deu com o corpo?

- Isso é que é o melhor - disse Sailor. – Nunca deu com ele! Pelo menos até o Reader lhes dizer onde é que o tinha enterrado. Eles avançaram com o caso e processaram-no, unicamente com base em provas circuns­tanciais. A meio do julgamento, quando o Reader pen­sava que aquilo ia ser canja, intimaram a mãe dele a depor como testemunha e quando ela recusou, engavetaram-na. Ela era uma velhota doente e não aguentou mais duma semana. Quando a soltaram, admitiu que o filho já tinha dito antes que havia de matar a mulher. O Reader, quando depôs, contou que a mulher, com quem vivia, o atacara primeiro e que tinha sido ferida acidentalmente, quando tinham lutado pela posse da arma. Disse-lhes onde é que o corpo estava enterrado e quando o desenterraram des­cobriram que tava cheio de buracos à queima-roupa. Esta descoberta e o facto de ele se ter posto a andar, não lhe fizeram bem nenhum. O júri já tava com pouca vontade de alinhar com a história dele. Ele disse-me que a maio­ria dos membros do júri eram mulheres e que, quando ele disse em tribunal que ela ficava danada sempre que levava porrada, quase que o linchavam ali mesmo. Acho que o Reader deve ter sido o tipo mais porreiro que conheci em Pee Dee. As tuas unhas já secaram, amendoim?



[1] Leitor – N.T.

[2] Referência a Em busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust – N.T.


Barry Gifford, Coração Selvagem (Wild at Heat), Quetzal, p. 139.

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