sexta-feira, outubro 27, 2006

Nick Hornby


'Caravan' – Van Morrison

A esplendorosa versão de Caravan em Its Too Late To Stop Now (indiscutivelmente o álbum mais agradável de Van Morrison, portanto nem vale a pena contrariarem-me), soa-me como se pudesse ser passada sobre o genérico final do melhor filme da nossa vida; e quando alguma coisa nos soa assim, podemos pensar, por associação de ideias, que também podia passar no nosso funeral. Creio que não estarei aqui a realçar demasiado a importância da nossa própria vida. Nem todos os filmes têm de ser como o Lawrence da Arábia ou como o Apocalypse Now, e era preciso ter-se muito pouca sorte, pelo menos nesta parte do mundo (e se você entrou numa livraria e com­prou este livro, isso significa que vive nessa parte do mundo a que me refiro), em não sentir alguns momentos de alegria ou pura esperança, sensações de triunfo absoluto ou simples contentamento no meio de tanto trabalho, desilusões e sofrimento. Para mim, Caravan reconhece e sintetiza tudo isto, e o facto de aquilo que produz a partir de toda esta confusão extraordinária respirar alegria não implica que a canção seja trivial.

Para mim, Caravan não é uma canção sobre a vida ou a morte; é uma canção sobre ciganos felizes, acampamentos, ligar a rádio e coisas do género. Mas na sua passagem longa e com acompanhamento improvisado exactamente antes do clímax, quando o saxofone se insinua docemente no tema cheio de vida tocado pelas cordas ao estilo da música de câmara contemporânea enquanto o piano paira melodicamente sobre todo o conjunto com notas agudas de blues, banda de Morrison parece concentrar-se num momento que se situa entre a vida e as suas consequências, no enorme átrio barroco de um sítio onde podemos parar para reflectir sobre todo o nosso passado. (Bolas! Súbito acesso de pânico: conseguem ouvir tudo isto, vocês que têm o álbum e estão suficientemente curiosos com esta descrição para depois irem ver se ouvem o mesmo? Possivelmente não. Mas - acabou o pânico - o objectivo deste livro não é termos a capacidade de ouvir as mesmas coisas; por outras palavras, não se trata de análise musical. O máximo que posso esperar é que também tenham as vossas interpretações sobre aquilo que ouvem, que passem muito tempo a ouvir música e que vejam rostos no fogo que ela propaga.) E, embora saibamos que não serei eu a reflectir, será arrogância esperar um pouco de reflexão por parte dos amigos e familiares? Afinal de contas, é o meu funeral. E não têm de pensar só sobre mim; podem pensar em todo o tipo de coisas, desde que estejam à altura da situação, da música e que não tenham a ver com comida, e-mails, e calçado, etc.

A única coisa que me preocupa no facto de ter Caravan como música no meu funeral é o naipe de cordas. Ao ouvir o tema, será que as pessoas vão pensar que estou a fazer alguma concessão à música clássica? Será que vão dizer para si próprios, «Pena que te­nha perdido as suas convicções no fim da vida, como toda a gen­te? Não quero que eles pensem assim. A menos que me aconteça alguma coisa inimaginável nas próximas décadas hei-de passar a vida a ouvir mais ou menos música pop de vários estilos. (tenho uns poucos CD's de música clássica e também os ponho a tocar de vez em quando; mas nunca reajo à música de Mozart ou de Haydn, vejo-a meramente como qualquer coisa que faz com que a sala tenha temporariamente um cheiro diferente, como uma vela perfu­mada, e não gosto de tratar a arte dessa maneira, com falta de res­peito.) Mas também sou daqueles que não se arrependem. «Ainda bem que foi preso por ter alguma coisa a ver com a demência da música pop. Ponto final», afirmou recentemente um famoso escritor e colunista corrosivo ao tentar justificar a prisão de um grande e bem conhecido manda-chuva do mundo da música, mas todos nós já ouvimos este tipo de coisas.

Não faço a mínima ideia se, para ele, a palavra «pop» tem o mesmo significado tem para mim, se pensa que Dylan, Martin Graye e Neil Young são dementes. Desconfio que sim. É uma queixa que nunca compreendi, porque a música, tal como uma cor ou uma nuvem, não é nem muito inteligente nem pouco inteligente - é aquilo que é. O acorde, a base de sustentação mais simples da canção mais insignificante e pateta, é uma coisa maravilhosa, perfeita e misteriosa, e quando um zé-ninguém inculto, emocionalmente falho de qualquer tipo de literatura junta uns tantos acordes, tem todas as probabilidades de estar a criar algo de belo e portentoso. Não quero ler livros para dementes, mas os livros são construídos a partir de palavras, os nossos únicos instrumentos de pensamento. Apesar da sua crueza e simplicidade, Twist and Shout soa bem - com efeito, qualquer tentativa para o sofisticar faria com que soasse muito pior - e eu discordo intrínseca e profundamente com qualquer pessoa que avalie a complexidade e inteligência musical, com superioridade. Esta música não funciona assim, e deve ser por isso que estas pessoas desprezam a música pop, por ser uma das poucas coisas que não funcionam assim. (É frequente odiarem igualmente o desporto.) Não gosto de música clássica por ela ser alvo de um culto - não sou um snobe ao contrário. Não gosto ( ou pelo menos não me empolga), porque parece pomposa, porque, pelo menos para os meus ouvidos, não consegue lidar com os sentimentos ínfimos que fazem parte de um dia, de uma semana e uma vida, porque não há coros, ou temas tocados no baixo, ou solos de guitarra, e porque há muita gente a fingir que gosta dela, e na realidade não gosta de música nenhuma (ou de nenhuma cultura), e porque cresci a ouvir coisas diferentes e ela não tem a capacidade de me emocionar, porque não tenho necessidade que a minha música soe «melhor» do que já soa - um grande solo de saxofone, daqueles super-rápidos, peidorrentos e de partir a loiça já basta para me encher as medidas. É por isso que Caravan há-de ser tocada no meu funeral.

O problema com a passagem longa a que me referi anteriormente, o trecho em que espero que os presentes pensem e reflictam é o... Bem, ok, então vou dizer-vos: é aquela passagem em que Van Mor­rison apresenta a banda. «Terry Adams no violoncelo... Nancy Ellis na viola... Bill Elwin no trompete... David Hayes no baixo...» Não é muito estranho? Será que as pessoas aguentam o meu funeral a ou­vir uma lista de nomes de pessoas que eles (e eu) não conhecemos? Agora comecei a pensar nesta passagem como uma espécie de dramatis personae metafórica: claro que não conheço o David Haynes ou a Nancy Ellis mas, sabem, talvez tenha conhecido alguém parecido com eles. É a melhor desculpa que me vem à cabeça neste mo­mento, e vai ter que ser assim mesmo, pois, já que não vou mudar a minha ideia, vão ter de se aguentar.

Nick Hornby, 31 Canções, Teorema, p. 125.

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