sábado, dezembro 17, 2005

Shepard


INACESSÍVEL LILLIE

Em 1890, bem nos confins do fronteiriço Texas, o juiz Roy Bean apaixonou-se perdidamente por uma fotografia da actriz Inglesa Lillie Langtry, mundialmente conhecida como «The Jersey Lily». Poucas mulheres havia naquela agreste região, para além das cavalheiras todas empoadas e pintadas que costumavam atacar nos acampamentos dos operários que andavam a construir o caminho de ferro do Pacífico Sul. O crime, todo o tipo de crimes, florescia ao longo da fronteira do Rio Pecos e do Rio Grande, e a autoridade legal mais próxima ficava a mais de cento e sessenta quilómetros dali, em Fort Stockton. Os caminhos de ferro e os rangers desesperavam à procura de um árbitro, de modo que nomearam o dono de uma loja da cidade de tendas de Vinegaroon como seu juiz de paz. Roy Bean era um homem de ar severo, pequeno mas encorpado, com uns olhos ligeiramente melancólicos e farta barba branca. A sua natureza autocrática fazia dele o homem perfeito para aquela missão e, ao fim de pouco tempo, a sua palavra era já a lei incontestada a oeste do rio Pecos. Para a aplicar, criou o mais terrível dos castigos - não o enforca­mento, mas a expulsão para aquele vasto deserto adjacente, sem armas, sem dinheiro, sem botas, e, pior do que tudo, sem um cavalo.

Roy Bean tinha um urso preto de estimação chamado Bruno, que costumava ficar preso nos degraus do tribunal improvisado, o qual servia também de salão de bilhar, de saloon e de venda de todo o tipo de géneros. Por vezes, o juiz Bean desmanchava-se em confidências com o seu urso, depois uma rápida sessão no «tribunal», acabando sempre por lhe perguntar se achava que tinha sido feita justiça. Bruno dava uma patada nos degraus poeirentos e resfolegava e o juiz ia embora satisfeito. Subia para a sua carruagem de um só cavalo e desandava para um sítio tranquilo junto ao rio. Aí, à sombra de uma velha alfarrobeira, redigia as suas cartas à inacessível Lillie. Mandava-lhe notícias da fronteira selvagem. Pequenas histórias de todos os dias, sobre homens que tinha condenado por crimes menores como enfiar escorpiões pela blusa de uma prostituta abaixo, ou por crimes maiores como o roubo de cavalos. Dizia-lhe, todo vaidoso, que tencionava organizar um combate de boxe para o título mundial em Rio Grande Sand Flat, à revelia das autoridades americanas e mexicanas e também dos rangers. E mais lhe dizia, dizia-lhe que ele, Roy Bean, se tornara um deus na sua pequena região e que adorava a imagem dela e que ansiava encontrar-se com ela num belo dia de Primavera. De vez em quando, fazia uma pausa na sua escrita, tirava a fotografia já muito gasta do bolso do colete e saboreava o perfil da amada. Os olhos baixos; o poderoso nariz aquilino, não muito diferente do seu; os lábios ligeiramente entreabertos, como que prestes a murmurar o nome dele. Certa vez, chegou mesmo a pensar que tinha ouvido a voz dela. Que a ouvira falar com ele, directamente. Todo o seu corpo empinou de um salto, fazendo com que o cavalo, assustado, partisse à desfilada, e por pouco não perdia a preciosa fotografia para o vento do Texas. E foi assim que Roy Bean escreveu à actriz um sem-número de cartas, sempre no mesmo jeito, como se estivesse em diálogo com ela, como se ela estivesse sentada ali, ao lado dele, no assento da carruagem. Nunca recebeu resposta. Escreveu-lhe que tinha chamado «The Jersey Lily» ao seu tribunal e saloon em honra dela, mas nunca rece­beu resposta. Escreveu-lhe que tinha pendurado sobre o bal­cão do saloon uma reprodução do retrato dela pintado por John Millais, e que tinha decorado os cantos da moldura com flores de cacto. Ele próprio tinha feito a decoração. Escreveu­-lhe que nenhum homem estava autorizado a sentar-se ao bal­cão do saloon, debaixo do retrato dela, sem tirar o chapéu ou a arma. Não recebeu resposta. Por fim, depois de catorze anos de obsessão e nenhum prémio, escreveu-lhe que tinha rebap­tizado a cidade inteira: Langtry, Texas. Isto chamou a atenção dela. Lillie Langtry fez uma pausa momentânea numa digres­são transcontinental. Viajava de comboio, na sua «carruagem­-palácio» privada, a que não faltavam os lustres, os tapetes persas e painéis lacados representando cenas do Oeste Selva­gem. A «Sunset Route» do Pacífico Sul estava agora completa e a linha do caminho de ferro estendia-se desde Nova Orleães até às praias douradas de São Francisco. Lillie desceu da sua carruagem e mal os seus saltos de cetim pisaram as ruas poeirentas de Langtry, informaram-na de que o bom juiz morrera um mês antes. O seu sucessor, contudo, queria oferecer-lhe, em me­mória do saudoso Roy Bean, o martelo de juiz e a espingarda do falecido. Lillie Langtry aceitou o martelo e a espingarda e seguiu viagem.

4/7/94 (LANGTRY, TEXAS)

Sam Shepard, Atravessando o Paraíso, Difel, 1997, (tradução de José Vieira de Lima), p. 107.


Sem comentários: