sexta-feira, dezembro 23, 2005

Jerome K. Jerome


A NOSSA FESTA DE FANTASMAS

Era Véspera de Natal.

Começo desta maneira porque é a maneira correcta, ortodoxa e respeitável de começar, e eu fui educado de uma maneira correcta, ortodoxa e respeitável, tendo sido ensinado a agir sempre de uma forma correcta, ortodoxa e respeitável - e nunca mais perdi esse hábito.

Claro que, diga-se de passagem, é perfeitamente desnecessário mencionar a data. O leitor experiente não precisa que eu lhe diga que era Véspera de Natal. É sempre Véspera de Natal numa história de fantasmas.

A Véspera de Natal é a grande noite de gala dos fantasmas, a sua festa anual. Na Véspera de Natal, toda a gente que é alguém na Terra dos Fantasmas - ou antes, falando-se de fantasmas, dever-se-ia dizer, suponho, toda a gente que é ninguém - aparece para se mostrar, para ver e ser visto, para se passear e exibir aos outros as mortalhas coleantes e as roupas com que foram para o túmulo, para criticar o estilo e desdenhar do aspecto uns dos outros.

O «Desfile da Véspera de Natal», como penso que eles próprios lhe chamam, é uma cerimónia sem dúvida primorosamente preparada e ansiada por todos os habitantes da Terra dos Fantasmas, especialmente pelo grupo dos elegantes, como os Barões assassinados, as Condessas vitimadas e os Condes que vieram com o conquistador e assassinaram os seus familiares, morrendo loucos.

Podemos estar certos de que treinam energicamente gemidos profundos e esgares demoníacos. Provavelmente ensaiam durante semanas gritos horripilantes e gestos de gelar o sangue. As correntes ferrugentas e punhais ensanguentados são inspeccionados e postos a funcionar convenientemente e os lençóis e mortalhas, cuidadosamente postos de lado desde a festa do ano anterior, são retirados, sacudidos, remendados e arejados.

Oh, a noite de 24 de Dezembro é uma noite excitante na Terra dos Fantasmas!

Os fantasmas nunca aparecem na Noite de Natal propriamente dita, como devem ter reparado. Provavelmente, a Véspera de Natal foi de mais para eles, não estão habituados a divertirem-se. Durante cerca de uma semana após a Véspera de Natal, os cavalheiros fantasmas sentem-se, com toda a certeza, muito responsáveis e passeiam­-se de um lado para o outro tomando a resolução solene de ficarem em casa na Véspera de Natal seguinte; por seu lado, as damas es­pectros mostram-se incoerentes e petulantes e, sem nenhuma razão aparente, dadas a rebentar em lágrimas e a abandonar a sala apres­sadamente mal alguém lhes dirige a palavra.

Os fantasmas sem qualquer posição a manter - meros fantasmas de classe média - de vez em quando, penso eu, fazem algumas assombrações nas suas noites de folga: na Noite das Bruxas e no solstício de Verão, e alguns deles chegam mesmo a participar em acontecimentos muito específicos - por exemplo, para celebrar o aniversário do enforcamento do avô de alguém ou para vaticinarem uma desgraça.

O vulgar fantasma britânico gosta mesmo de agoirar. Mandem-no profetizar uma desgraça a alguém e ele sentir-se-á feliz. Deixem-no forçar a entrada numa casa pacífica e pô-la de pernas para o ar por ter previsto um funeral, ou uma bancarrota ou por ter dado a entender que uma desgraça se aproximava ou qualquer outro desastre terrível, acerca do qual ninguém no seu perfeito juízo quereria saber mais cedo, e cujo conhecimento não tem qualquer utilidade, e logo ele sente que junta o útil ao agradável. Nunca perdoaria a si próprio se alguém da sua família tivesse algum problema e ele não tivesse lá estado alguns meses antes, brincando no relvado ou balan­çando-se na grade da cama de qualquer pessoa. Depois, há os fan­tasmas muito novos, ou muito conscienciosos (sentem na consciência o peso de um testamento perdido ou de um número ainda não descoberto) e que passam o ano todo a fazer assombrações; e há também o fantasma niquento, indignado por ter sido enterrado no caixote do lixo ou no lago da aldeia, e que nunca dá uma única noite de sossego aos paroquianos até alguém lhe pagar um funeral de primeira classe.

Mas estes são excepções. Como disse, o fantasma normal e tra­dicional só faz a sua aparição uma vez ao ano, na Véspera de Natal, e fica satisfeito.

Porquê na Véspera de Natal, entre todas as noites do ano, é algo que nunca consegui perceber, pois é, invariavelmente, uma das mais desanimadoras noites para andar na rua - está frio e há lama e chuva por toda a parte. Para além disso, tenho a certeza de que na época de Natal todas as pessoas já estão suficientemente ocupadas numa casa cheia de parentes vivos e não querem os fantasmas dos parentes mortos a vaguear por ali.

Deve haver algo de fantasmagórico na atmosfera do Natal, algo relacionado com a atmosfera pesada, quente e húmida e que atrai os fantasmas, tal como a humidade das chuvas de Verão faz aparecer os sapos e os caracóis.

E não são só os fantasmas que aparecem sempre na Véspera de Natal: os vivos falam sempre deles na Véspera de Natal. Sempre que cinco ou seis pessoas que falem inglês se sentam à lareira na Véspera de Natal, começam logo a contar histórias de fantasmas. Nada nos satisfaz mais na Véspera de Natal do que ouvir contar anedotas autênticas sobre espectros. É uma época fantástica e festiva e nós adoramos pensar em campas, cadáveres, assassínios e sangue.

Há muitas coisas parecidas nas nossas experiências fantasma­góricas, mas claro que a culpa disso cabe apenas aos fantasmas, que nunca experimentam truques novos e se ficam sempre pelos antigos e garantidos; como consequência, depois de participarmos numa festa na Véspera de Natal e de ouvirmos seis pessoas relatarem as suas aventuras com espíritos, nunca mais precisaremos de ouvir mais histórias de fantasmas. Escutar mais histórias de fantasmas depois disso seria como assistir a duas comédias ridículas ou ler dois jornais cómicos - a repetição seria cansativa.

Há sempre o jovem que certo ano foi passar o Natal numa casa de campo e que na Véspera de Natal foi posto a dormir na ala oci­dental. Então, a meio da noite, a porta do quarto abre-se silencio­samente e alguém - geralmente uma senhora em camisa de dormir - entra devagar e senta-se na cama. O jovem pensa que deve ser uma das visitas ou algum parente da família, embora não se lembre de alguma a vez a ter visto; julga que ela não conseguia adormecer e que, sentindo-se sozinha e desamparada, veio ao quarto dele para conversar. Não faz a mínima ideia de que se trata de um fantasma: é tão ingénuo. No entanto, ela não fala; e quando ele volta a olhar. já ela desapareceu!

Quando o jovem relata o acontecimento ao pequeno-almoço na manhã seguinte, perguntando às senhoras presentes se fora alguma delas, todas asseguram que não; o anfitrião, pálido, suplica-lhe que não fale mais do assunto, e o jovem acha que é um pedido estranho,

Depois do pequeno-almoço, o anfitrião leva o jovem para um canto e explica-lhe que o que ele viu foi o fantasma de uma senhora que tinha sido morta ou que assassinara alguém naquela mesma cama - não interessa muito qual das duas situações: pode-se ser um fantasma por se ter assassinado alguém ou por se ter sido morto, é como preferirem. O fantasma assassino é talvez o mais popular; mas, por outro lado, as pessoas assustam-se mais com um fantasma de alguém assassinado, que assim pode exibir as feridas e gemer.

Há também o convidado céptico - diga-se de passagem que é sempre o convidado que é levado à certa nestas coisas. Um fantasma nunca presta muita atenção à sua própria família: quem ele gosta de assustar é «o convidado»; este, depois de ter escutado a história de fantasmas contada pelo seu anfitrião na Véspera de Natal, ri-se e diz que não acredita em fantasmas e que para o provar dormirá no quarto assombrado naquela mesma noite.

Toda a gente lhe pede para não ser imprudente, mas ele persiste na sua insensatez e sobe despreocupadamente para o Quarto Amarelo (ou qualquer outra cor que o quarto assombrado possa ter) com uma vela na mão, desejando a todos uma boa noite e fechando a porta.

Na manhã seguinte aparece com cabelo branco, da cor da neve.

Não conta a ninguém o que viu: é demasiado horrível.

Também existe o convidado corajoso: vê um fantasma, sabe que é um fantasma e observa-o enquanto ele entra no quarto e desapa­rece através do lambril; e depois, como o fantasma não dá sinais de querer voltar - e, portanto, não vale a pena ficar acordado -, resolve dormir.

Não diz a ninguém que viu o fantasma para não assustar as pessoas – há quem se assuste tanto com fantasmas -, mas decide esperar pela noite seguinte para ver se a aparição surge de novo.

De facto, aparece de novo; desta vez, levanta-se da cama, veste­-se, penteia-se e segue-o; é então que descobre uma passagem secreta que liga o quarto à adega - uma passagem que certamente fora bastante utilizada nos maus velhos tempos de antanho.

A seguir, temos o jovem que acordou a meio da noite com uma sensação estranha e encontrou o seu tio solteiro e rico aos pés da cama. O tio rico sorri de uma forma estranha e desaparece. O jovem levanta-se imediatamente e olha para o seu relógio: tinha parado às quatro e meia porque se esquecera de lhe dar corda.

No dia seguinte, começa a investigar e descobre que, estranha­mente, o seu tio rico, de quem ele era o único sobrinho, tinha casado com uma viúva com onze filhos às onze e quarenta e cinco precisa­mente, havia apenas dois dias.

O jovem não tenta explicar aquelas estranhas circunstâncias. A única coisa que faz é atestar a veracidade da sua narrativa.

E, para mencionar outro caso, há o senhor que, após um jantar de mações, volta à noite para casa, reparando então numa luz que emergia de uma abadia em ruínas; aproxima-se sorrateiramente e espreita pelo buraco da fechadura, vendo o fantasma de uma «freira cinzenta» beijando o fantasma de um monge castanho; fica tão cho­cado e amedrontado que desmaia imediatamente, sendo descoberto na manhã seguinte caído contra a porta, ainda sem fala e apertando com toda a força na mão a sua fiel chave de casa.

Todas estas coisas acontecem na Véspera de Natal, são todas contadas na Véspera de Natal. Pois, contar histórias de fantasmas numa outra noite que não a de vinte e quatro de Dezembro seria impossível na sociedade inglesa tal como é hoje.

Jerome K. Jerome, ensaio incluso na colectânea Fantasmas para o Natal, Edições ASA, 1998, (tradução de Maria Dulce Guimarães da Costa), p. 9.

Sem comentários: