
"Devo confessar que acredito pouco nas leis. Demasiado duras, são transgredidas com razão. Demasiado complicadas, o engenho humano encontra facilmente maneira de se escapar por entre as malhas dessa massa monótona e frágil. O respeito pelas leis antigas corresponde ao que tem de mais profundo a piedade humana; serve também de almofada à inércia dos juizes. As mais velhas participam daquela selvajaria que se empenhavam em corrigir; as mais veneráveis são ainda um produto da força. A maior parte das nossas leis penais só atinge, talvez felizmente, uma pequena parte dos culpados; as nossas leis civis nunca serão bastante maleáveis para se adaptar à imensa e fluida variedade dos factos. Mudam menos rapidamente que os costumes; perigosas quando eles as ultrapassam, são-no ainda mais quando pretendem precedê-los. E contudo, deste amontoado de inovações que oferecem tantos riscos ou de rotinas envelhecidas emergem, aqui e ali, como na medicina, algumas fórmulas úteis. Os filósofos gregos ensinaram-nos a conhecer um pouco melhor a natureza humana. Há já algumas gerações que os nossos juristas trabalham na direcção do senso comum. Eu próprio realizei algumas dessas reformas parciais que são as únicas duradouras. Toda a lei muitas vezes transgredida é má: compete ao legislador revogá-Ia ou substituí-Ia, para que o desprezo em que essa louca determinação caiu se não estenda a outras leis mais justas. O fim que eu me propunha era uma prudente abolição de leis supérfluas, um pequeno grupo de sábias decisões firmemente promulgadas. Parecia ter chegado o momento de, no interesse da humanidade, revalorizar todas as prescrições antigas.
Em Espanha, num dia em que eu visitava sozinho uma exploração mineira nos arredores de Tarragona, um escravo, cuja vida se passara quase inteiramente naqueles corredores subterrâneos, atirou-se a mim com uma faca. Não ilogicamente, vingava-se no imperador dos seus quarenta anos de servidão. Desarmei-o facilmente; entreguei-o ao meu médico; a sua fúria abrandou; transformou-se no que verdadeiramente era, um ser menos ajuizado que outros e mais fiel que muitos. Este delinquente que a lei rigorosamente aplicada teria mandado matar sem demora tornou-se para mim um útil servidor. A maior parte dos homens parece-se com este escravo: submeteram-se de mais; os seus longos períodos de embotamento são interrompidos por algumas revoltas tão brutais quanto inúteis. Eu queria ver se uma liberdade sensatamente compreendida não daria melhor resultado, e espanta-me que semelhante experiência não tenha tentado outros príncipes. Este bárbaro condenado ao trabalho das minas tornou-se para mim o símbolo de todos os nossos escravos, de todos os nossos bárbaros. Não me parecia impossível tratá-los como eu tinha tratado este homem, torná-los inofensivos à força de bondade. contanto que soubessem primeiro que a mão que os desarmava era firme. Até agora todos os povos decaíram por falta de generosidade: Esparta teria sobrevivido mais tempo se tivesse interessado os hilotas na sua sobrevivência; um belo dia Atlas deixa de suportar o peso do céu e a sua revolta faz estremecer a Terra. Teria querido afastar o mais possível, evitar se pudesse, o momento em que os bárbaros do exterior e os escravos do interior se lançarão sobre um mundo que lhe mandam respeitar de longe ou servir como inferiores, mas cujos benefícios não são para eles. Empenhava-me em que a mais deserdada das criaturas, o escravo que limpa as cIoacas da cidade, o bárbaro esfomeado que ronda as fronteiras tivessem empenho em que Roma durasse.
Duvido de que toda a filosofia do mundo consiga suprimir a escravatura: o mais que poderá suceder é mudarem-lhe o nome. Sou capaz de imaginar formas de servidão piores que as nossas, por serem mais insidiosas: seja que consigam transformar os homens em máquinas estúpidas, e satisfeitas, que se julgam livres quando estão subjugados seja que desenvolvam neles, com exclusão dos repousos e prazeres humanos, um gosto pelo trabalho tão arrebatado como a paixão da guerra entre as raças bárbaras. Prefiro ainda a nossa escravidão de facto a esta servidão do espírito ou da imaginação. Seja como for, o horrível estado que põe o homem à mercê de um outro homem precisa de ser cuidadosamente regulado pela lei. Estive atento a que o escravo não continuasse a ser aquela mercadoria anónima que se vende sem ter em conta os laços de família que ele haja criado, esse objecto desprezível de que um juiz não regista o testemunho senão depois de o ter submetido à tortura, em vez de o aceitar sob juramento. Proibi que o obrigassem às profissões degradantes ou perigosas, que o vendessem aos donos de casas de prostituição ou às escolas de gladiadores. Que aqueles que gostam dessas profissões sejam os únicos a exercê-Ias: serão assim mais bem desempenhadas.
(...)
Uma parte dos nossos males provém de haver demasiados homens excessivamente ricos ou desesperadamente pobres. Por felicidade, no nosso tempo, tende-se a estabelecer um equilíbrio entre estes dois extremos: as fortunas colossais dos imperadores e dos libertos pertencem ao passado: Trimalcião e Nero morreram. Mas pelo que respeita a um inteligente reajustamento económico do mundo, tudo está por fazer. Ao chegar ao poder renunciei às contribuições voluntárias das cidades para o imperador, que não são mais que um roubo disfarçado. Aconselho-te a, por tua vez, renunciares também a elas. A anulação completa das dívidas dos particulares ao Estado era uma medida mais arriscada, mas necessária para fazer tábua rasa depois de dez anos de economia de guerra. A nossa moeda tem-se desvalorizado perigosamente de há um século para cá: é todavia pela taxa das nossas moedas de ouro que se avalia a eternidade de Roma: compete-nos restituir-lhes o seu valor e o seu peso solidamente medidos em coisas. As nossas terras são apenas cultivadas ao acaso: só distritos privilegiados, o Egipto, a África, a Toscana e alguns outros, souberam criar comunidades camponesas sabiamente exercitadas na cultura do trigo ou da vinha. Um .dos meus cuidados era amparar esta classe, tirar dela instrutores para populações aldeãs mais primitivas ou mais rotineiras, menos hábeis. Pus termo ao escândalo das terras deixadas em alqueive por grandes proprietários pouco cuidadosos do bem público: todo o campo não cultivado há cinco anos passou a pertencer desde então ao cultivador que se encarrega de o fazer produzir. Sucedeu pouco mais ou menos o mesmo com as explorações mineiras. A maior parte dos nossos ricos faz enormes donativos ao Estado, às instituições públicas, ao príncipe. Muitos agem assim por interesse, alguns por virtude; quase todos ganham com isso. Mas eu teria querido ver a sua generosidade tomar outras formas que não fossem a da ostentação na esmola, ensinar-lhes a aumentar sensatamente os seus bens no interesse da comunidade, como só têm feito, até aqui, para enriquecer os seus filhos. Foi nesse espírito que eu próprio tomei nas minhas mãos a administração do domínio imperial: ninguém tem o direito de tratar a terra como o avaro o seu pote de ouro."
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, Ulisseia (2ª ed., 1983), p. 99.
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