
O POETA CAI PELA SEGUNDA VEZ
O poeta chorava
o poeta buscava-se todo
o poeta andava de pensão em pensão
comia mal tinha diarreias extenuantes
mas buscava uma estrela, talvez a salvação.
O poeta era sinceríssimo, honesto, total.
raras vezes tomava o eléctrico
em podendo
voltava
não podendo
ver-se-ia
tudo mais ou menos
a cair
de vergonha
mais ou menos
como os ladrões
E agora o poeta começou a rir
rir de vós ó manutensores
da afanosa ordem capitalista
já riu de si-mesmo, de se ter suicidado
de ter tido diarreia de não pedir dinheiro
o poeta viu chegar a orquestra dos silêncios
primeiro quis só ouvir depois teve que olhar
depois comprou jornais foi para casa leu tudo
quando chegou à página dos anúncios
o poeta teve um vómito que lhe estragou
as únicas que ainda tinha
e pôs-se a rir do logro é um tanto sinistro
mas é inevitável é um bem é uma dádiva.
Tirai-lhe agora os versos que ele próprio despreza
negai-lhe o amor que ele mesmo abandona
caçai-o entre a multidão
crucificai-o de novo mas com mais requinte.
Subsistirá. É maior do que isso.
Prendei-o. Viverá de tal forma
que as próprias grades farão causa com ele
e matá-lo não é solução
o poeta
o poeta
O POETA
destrói-vos.
Mário Cesariny, burlescas, teóricas e sentimentais, Editorial Presença, 1972, p. 61
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