quarta-feira, novembro 30, 2005

Cesariny


O POETA CAI PELA SEGUNDA VEZ


O poeta chorava

o poeta buscava-se todo

o poeta andava de pensão em pensão

comia mal tinha diarreias extenuantes

mas buscava uma estrela, talvez a salvação.

O poeta era sinceríssimo, honesto, total.

raras vezes tomava o eléctrico

em podendo

voltava

não podendo

ver-se-ia

tudo mais ou menos

a cair

de vergonha

mais ou menos

como os ladrões


E agora o poeta começou a rir

rir de vós ó manutensores

da afanosa ordem capitalista

já riu de si-mesmo, de se ter suicidado

de ter tido diarreia de não pedir dinheiro

o poeta viu chegar a orquestra dos silêncios

primeiro quis só ouvir depois teve que olhar

depois comprou jornais foi para casa leu tudo

quando chegou à página dos anúncios

o poeta teve um vómito que lhe estragou

as únicas que ainda tinha

e pôs-se a rir do logro é um tanto sinistro

mas é inevitável é um bem é uma dádiva.


Tirai-lhe agora os versos que ele próprio despreza

negai-lhe o amor que ele mesmo abandona

caçai-o entre a multidão

crucificai-o de novo mas com mais requinte.

Subsistirá. É maior do que isso.

Prendei-o. Viverá de tal forma

que as próprias grades farão causa com ele

e matá-lo não é solução

o poeta

o poeta

O POETA

destrói-vos.

Mário Cesariny, burlescas, teóricas e sentimentais, Editorial Presença, 1972, p. 61

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