
Salvemos o Cavaco
Se às ambições da primeira adolescência quisermos chamar veleidades, então eu admito aqui uma antiga e frustrada veleidade de zoólogo. A vida virou-me para outras coisas e eu, levianamente, deixei os bichos entregues à bicharada. Mas cá dentro, bem fundo, fiquei armadilhado por um misto de curiosidade e de remorso, o que me leva a ser espectador atento de algumas séries da televisão sobre o mundo animal. Por vezes, são até lindíssimas e os bichos comportam-se perante as câmaras com um profissionalismo e um empenho que a RTP não pode, em boa moral, exigir aos seus tarefeiros.
Há tempos, apanhei - infelizmente já a meio - um filme sobre o cavaco e o risco da sua possível desaparição. Interessei-me naturalmente pelo tema (que não pode deixar nenhum português indiferente) e tratei de o ponderar um pouco mais. Este texto reflecte, no que tem de monográfico, como no que comporta de prece e apelo, o carinho, o cuidado e o susto de um cidadão que se quer brioso.
Por tosca que seja a sua aparência e pese embora ao mito do berço humilde, o cavaco é oriundo de muito boas famílias. Ele é um Scyllarides Latus (Latreille). E embora eu esteja pouco informado da nomenclatura científica das espécies, creio que neste caso basta alguma sensibilidade fonética para que o ressaibo aristocrático salte à vista. Aliás, segundo as fichas da FAO que consultei, os malteses têm a delicadeza de lhe chamar Ckala Sewda e os tunisinos Ziz-el-Bahr. Nem um Hohenzollern é assim tratado.
Bem vistas as coisas, o caso não é para espanto de maior, já que o mesmo sucede entre nós com os Silvas, por exemplo. Pululam por aí, invadiram a lista telefónica e reproduzem-se como coelhos. Mas a sua origem perde-se no melhor patriciado romano. O aristocrático general que Roma enviou para cercar e arrasar Masada foi precisamente Flavius Silva.
No entanto, tempus fugit. E Darwin mandou que as espécies evoluíssem do seu habitat. E eu não sei que ciladas e torpezas a mãe natureza reservou ao cavaco para o obrigar a chegar aos nossos dias com uma morfologia tão desencorajante.
O cavaco é um crustáceo, corrente mas indevidamente confundido com o cavaquinho (Scyllarus arcus). Mas o cavaco atinge em média os 45 centímetros (o que, transposto para escala humana, andará aí por 1,78 metros) e, segundo a monografia que lhe dedicou Helen Rost Martins (separata do ]ournal of Crustacean Biology, vol. 5, "nº 2, Maio de 1985), o exemplar mais pujante jamais apanhado pesava pouco mais de quilo e meio (o que, na transposição de escalas crustáceo/homem sugere cerca de 75 quilos).
A verdadeira comparação que se pode fazer é, pois, com a lagosta e o lavagante. Só que o cavaco não tem o glamour da lagosta nem o arreganho marialva do lavagante. Às grandes antenas de qualquer dessas espécies, o cavaco contrapõe dois trambolhos arredondados que parecem coutos feitos em cirurgia de guerra. Carece também das imponentes pinças daquelas duas espécies. Tais características não podiam deixar de ter as suas consequências e o cavaco sente-se vulnerável e perseguido.
Não dispondo de segurança bastante, aloja-se e vive em concavidades rochosas e pequenas cavernas (e, como o homem sabe por experiência, a caverna não é um ambiente adequado à sofisticação do comportamento).
A carapaça é bastante rígida, o que mais lhe dificulta os movimentos do que o protege dos seus perseguidores. Avisa a FAO que está florestada de pêlos curtos, o que não me parece constituir um problema (ou, pelo menos, não é problema meu).
A cor é castanha, mas Lyons, numa comunicação de 1982 (cit. in H.R.M., ibidem) descobriu que há uma fugaz fase anterior em que é laranja.
A tese do programa da televisão a que me reporto era a de a espécie estar em perigo pela sua incapacidade de descer às profundezas adequadas e que outros crustáceos atingem. Essa inexorável superficialidade seria a sua perdição. Antes de mais, por sofrer um impacte superior da poluição das águas. Depois, pela acção de um predador específico: o mero. Um mero mero devora cavacos em série com invejável desenvoltura, desde que este ponha a cabecinha fora da gruta ou se passeie cá por fora com aqueles cinco pares de patas que não devem dar jeito nenhum para saltar barreiras. Enfim, pela pesca humana. Na Madeira, segundo Maul (H.R.M., ibidem), encontra-se extinto. (Quem diria?) Na costa nordeste de África, segundo Maigret (idem, mas não é esse) também. Em Cabo Verde subsiste, mas deixa-se apanhar por grosso em armadilhas submarinas, que cobardemente exploram a dificuldade do cavaco em entender a psicologia humana (sendo certo que a falta de antenas decentes o priva de agarrar o subtil e que a falta de pinças o impede de agarrar seja o que for). Nos Açores e nas Canárias o método predominante é o artesanal: o da pesca por mergulho. (Na esteira do que dizia De Gaulle sobre o poder político em França: não se conquista, apanha-se à mão.) H.R.M. (ibidem), sendo menos catastrofista quanto ao ritmo da extinção do cavaco, admite, contudo, que a versão dominante é a de que o número de exemplares em águas açorianas diminuiu drasticamente nos últimos anos. (E eu assumo a responsabilidade científica de afirmar o mesmo relativamente às cidades e campos de Portugal, com base em observações pessoais empíricas, mas bastante sistemáticas.)
O principal trunfo para a sobrevivência da espécie deveria consistir na capacidade de reprodução do cavaco: a postura inicia-se no fim de Junho (informação útil para meros, predadores menores e ainda outros) e pode atingir os 350 mil ovos! Só que a esmagadora maioria dos ovos se perdem. Em Portugal, em 1987, registou-se um caso único de desova incomensuravelmente maior e hoje vemos a dimensão a que pequenos predadores e outros mal-intencionados a reduziram já.
Da eclosão feliz de um ovo emerge a «larva nauplosiana». Registo o facto incidentalmente, porque tenho inúmeros amigos pessoais nessa categoria e nem eles nem eu sabíamos que têm todo o direito a usar tal título nos seus cartões de visita.
Volvendo ao fundo da questão. O cavaco será tosco ou menos grácil e brioso. Custar-nos-á que não tenha nenhum sentido épico de destino, contentando-se com a duvidosa tentativa de autoperpetuação pela desova grossista. Mas é uma criatura de Deus, um animal do nosso mundo e está em vias de extinção. Os senhores deputados, que já salvaram o lince da Malcata e o lobo ibérico, não poderão fazer nada para salvar o cavaco?
Nuno Brederode Santos, Rumor Civil, Relógio d'Água, p. 219.
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