quinta-feira, novembro 10, 2005

Walser



BASTA !

Vim ao mundo a tantos de tal, fui educado em tal sítio, fui para a escola como qualquer um, sou isto e aquilo, chamo-me fulano de tal e não penso muito. Do ponto de vista do género sou do sexo masculino, do ponto de vista do estado sou um bom cidadão e do ponto de vista social pertenço à melhor sociedade. Sou um membro impecável, pacato e amável da sociedade humana, um dos chamados bons cidadãos, gosto de beber o meu copo de cerveja sobriamente, e não penso muito. Assim, não é de espantar que de preferência coma bem e também não é de espantar que as ideias não se aproximem de mim. O pensamento arguto é-me com­pletamente alheio. As ideias ficam sempre muito longe de mim e por isso sou um bom cidadão, já que um bom cidadão não pensa muito. Um bom cidadão come o que tem a comer e isso basta!

Não esforço particularmente a cabeça, deixo isso às outras pessoas. Quem esforça a cabeça torna-se odiado. Quem pensa muito tem fama de ser incómodo. Já Júlio César apontava o dedo grosso ao Cássio, esquelético e de olhos encovados, a quem temia porque suspeitava que ele tinha ideias na cabeça. Um bom cidadão não pode inspirar medo e suspeita. Pensar muito não é o seu ofício. Quem pensa muito torna-se mal amado e é inteiramente desnecessário ser mal amado. Ressonar e dormir é melhor ser poeta ou pensar. Vim ao mundo a tantos de tal, fui à escola em tal sítio, leio ocasionalmente o jornal, tenho a profissão tal e tal, tenho tantos e tantos anos, pareço ser um bom cidadão e gostar de comer bem. Não esforço especialmente a cabeça, já que deixo isso às outras pessoas. Matar a cabeça a pensar não é o meu forte, pois quem pensa muito padece de dores de cabeça e a dor de cabeça é inteiramente supérflua. Dormir e ressonar é melhor do que matar a cabeça e beber um copo de cerveja sobriamente é de longe melhor do que ser poeta e pensar. As ideias ficam sempre longe de mim e não desejo, em circunstância alguma, matar a cabeça, deixo isso aos homens que dirigem o estado. Por isso sou justamente um bom cidadão, para viver em paz, para não precisar de esforçar a cabeça, para que as ideias fiquem longe de mim e para que possa morrer de medo de ter que pensar muito. Tenho receio do pensamento arguto. Sempre que penso com argúcia, fica tudo azul e verde diante dos meus olhos. Prefiro beber um bom copo de cerveja e deixar qualquer pensamento arguto para os dirigentes do estado. Os políticos podem, pois, pensar com quanta argúcia quiserem, até a cabeça lhes estoirar. Diante dos meus olhos fica sempre tudo azul e verde quando puxo pela cabeça, o que não é bom, por isso a esforço o menos possível e me mantenho completamente acéfalo e sem ideias. Quando apenas os políticos pensam até tudo lhes ficar azul e verde diante dos olhos e a cabeça lhes saltar, tudo está em ordem, e nós, os da nossa espécie, podemos beber em paz o nosso copo de cerveja, sobriamente, de preferência comer bem e à noite dormir tranquilamente e ressonar, admitindo que ressonar e dormir seja melhor do que dar cabo da cabeça e do que ser poeta e pensar. Quem esforça a cabeça apenas se torna mal amado e quem apregoa intenções e opiniões fica com fama de ser uma pessoa incómoda, ao passo que um bom cidadão não deve ser incómodo, mas antes uma pessoa amável. É por isso que eu deixo aos homens políticos, tranquilamente, o pensamento arguto que dá cabo da cabeça, pois nós, os da nossa espécie, não passamos de membros sólidos mas insignificantes da sociedade humana, dos chamados bons cidadãos ou filisteus, que gostam de beber sobriamente o seu copo de cerveja e de comer um bom e belo prato de comida bem suculenta, e isso basta!

Os homens políticos devem pensar até confessarem que tudo ficou verde e azul diante dos seus olhos e que têm dores de cabeça. Um bom cidadão nunca deve ter dores de cabeça, pelo contrário, o seu belo copo deve sempre saber-lhe bem, na mais saudável sobriedade, e à noite deve dormir tranquilamente e ressonar. Chamo-me fulano de tal, vim ao mundo a tantos de tal e fui manda­do para a escola como toda a gente, em cumprimento do dever, em tal e tal sítio, sou isto e aquilo de profissão, tenho tantos e tantos anos e dispenso pensar muito e esforçadamente, porque deixo com prazer o esforço mental e as avassaladoras dores de cabeça às cabeças daqueles que dirigem e decidem e que se sentem res­ponsáveis. Nós, os da nossa espécie, não sentimos nenhum tipo de responsabilidade, já que a nossa espécie bebe sobriamente o seu copo e não pensa muito, pois deixa esse deleite muito especial para as cabeças que têm a responsabilidade. Fui à escola em tal e tal sítio, onde fui obrigado a esforçar a cabeça, a qual, desde então, não voltei a esforçar regularmente nem a ocupar por muito tempo. Nasci a tantos de tal, chamo-me fulano de tal, não tenho responsabilidade nenhuma e não sou, de forma alguma, o único. Felizmente há muitos, mesmo muitos, que, como eu, saboreiam sobriamente o seu copo de cerveja, que, tal como eu, pensam pouco e não gostam de matar a cabeça, que preferem alegremente deixar isso para outras pessoas, por exemplo, para os políticos. O pensamento arguto é-me a mim, tranquilo membro da sociedade humana, completamente estranho e, felizmente, não apenas a mim, mas a legiões de outros que, como eu, preferem comer bem e não pensar muito, têm tantos e tantos anos, foram educados em tal e tal sítio, são membros impecáveis da sociedade, como eu, são bons cidadãos, como eu, e para os quais o pensamento arguto é tão estranho como para mim, e isso basta!

Robert Walser, O Passeio e Outras Histórias, Granito Editores e Livreiros, 2001, pag. 99.

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