quarta-feira, janeiro 17, 2007

Evelyn Waugh




No dia seguinte, o vento tinha amainado e nós balouçávamos de novo ao ritmo da ondulação. Falava-se menos agora de enjoos do que de ossos partidos; pessoas tinham caído durante a noite, e deram-se vários acidentes desagradáveis nos soalhos das casas de banho.

Nesse dia, porque tínhamos falado muito no dia anterior e porque o que tínhamos a dizer precisava de poucas palavras, falá­mos pouco. Lemos; Julia descobriu um jogo de que gostava. Quando ao cabo de longos silêncios falámos, vimos que os nossos pensamentos tinham andado a par.

«Tens estado a guardar a tua tristeza», disse eu.

«Foi tudo o que ganhei. Disseste ontem. É a minha recompensa.»

«É uma paga da vida. Uma promessa pagável à vista.»

A chuva parou ao meio-dia; à tarde, as nuvens dispersaram-se, e o Sol, atrás de nós, entrou subitamente no salão onde estávamos sentados, ofuscando todas as luzes.

«O pôr do Sol», disse Julia, «O fim do nosso dia.»

Levantou-se e, apesar de o balanço do navio parecer não ter fim, levou-me para o convés. Enfiou o braço no meu e a mão na minha, dentro do bolso do meu sobretudo. O convés estava seco e vazio, varrido apenas pelo vento da deslocação do navio. Quando parávamos, no laborioso caminho em frente, longe da fuligem voadora da chaminé, éramos alternadamente empurrados um con­tra o outro, depois puxados com força, quase separados, braços e dedos entrelaçados quando segurava a amurada e Julia se agarra­va a mim, juntos novamente, logo afastados; depois, num balanço maior do que os outros, encontrei-me atirado contra ela, apertan­do-a contra a amurada, afastando-me dela mas prendendo-a entre os meus dois braços de cada um dos lados, e o navio estabilizou no fim da descida como que a arranjar força para a subida, e ficá­mos assim abraçados, ao ar livre, rosto contra rosto, o seu cabelo esvoaçando e tapando-me os olhos; o horizonte escuro de água em torrente, brilhante agora com o oiro do pôr do Sol, continuava por detrás de nós, depois começou a descer até que consegui ver através do cabelo negro de Julia um amplo céu dourado, e ela foi atirada contra o meu coração, segura pelas minhas mãos à amu­rada, o seu rosto ainda apertado contra o meu.

Nesse minuto, com os lábios de encontro ao meu ouvido, e a respiração quente no vento salgado, Julia disse, embora eu não tivesse falado, «sim, agora», e quando o barco se endireitou e começou a navegar em águas mais tranquilas, Julia levou-me para baixo.

Não era tempo para doçuras de luxúria; elas viriam, na devida altura, com as andorinhas e as flores da tília. Agora sobre a água rude devia observar-se uma formalidade, mais nada. Era como se uma cedência dos seus rins tivesse sido combinada. Eu fazia a minha primeira entrada como precursor de uma propriedade que gozaria e desenvolveria à vontade.

Nessa noite jantámos na parte de cima do navio, no restau­rante, e através das janelas as estrelas saíram e passaram pelo céu como uma vez, lembrei, as vira passar sobre as torres e espigões de Oxford. Os criados prometeram que na noite seguinte a orquestra tocaria de novo e que a sala se encheria. Era melhor reservarmos agora, disseram, se queríamos uma boa mesa.

«Oh querido», disse Julia, «como nos podemos esconder com bom tempo, nós, órfãos da tempestade?»

Nessa noite não consegui deixá-la, mas na manhã seguinte, cedo, quando mais uma vez fazia o caminho de regresso pelo corredor, descobri que conseguia andar sem dificuldade; o navio navegava facilmente sobre um mar calmo, e percebi que a nossa solidão tinha terminado.

Evelyn Waugh, Reviver o Passado em Brideshead, Moraes, 1983, p. 246 (tradução de Ana Maria Rabaça)

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