sexta-feira, novembro 10, 2006

Roth (2)



Naquela primeira noite estivemos sentados no sofá a ouvir Dvorák. A certa altura, Consuela encontrou um livro que lhe interessava - não me lembro qual era, mas nunca esquecerei o momento. Ela virou-se - eu estava sentado onde tu estás, no can­to do sofá, e ela estava sentada ali -, deu meia volta ao tronco e, com o livro posto no braço do sofá, começou a ler e, como esta­va inclinada para a frente, vi-lhe as nádegas sob o vestuário, vi claramente a sua forma e isso foi um tremendo convite. Ela é uma jovem mulher alta num corpo ligeiramente estreito de mais. É como se o corpo estivesse um nadinha desajustado. Não por ela ser demasiado gorda. Mas também não é, de modo algum, do tipo anoréctico. Vê-se nele carne feminina, e é carne boa, abun­dante - é por isso que a vemos. Ela ali estava, pois, não aberta­mente atravessada no sofá, mas, mesmo assim, com as nádegas a modo que meio viradas para mim. Uma mulher tão consciente do seu corpo como Consuela e a fazer aquilo, concluí, convi­dando-me para começar. O instinto sexual ainda está intacto - ­nenhuma da correcção cubana interferiu. Vejo, naquele rabo meio virado, que nada se atravessou no caminho da coisa pura. Nada daquilo de que faláramos, nada do que eu escutara a res­peito da sua família, nada interferira. Ela sabe como virar o rabo, apesar de tudo isso. Vira-o do modo primordial. Exibindo-o. E a exibição é perfeita. Diz-me que não preciso mais de reprimir o desejo de lhe tocar.

Comecei a acariciar-lhe as nádegas e ela gostou.

- Isto é uma situação estranha - disse. - Nunca poderei ser tua namorada. Por todas as razões possíveis. Vives num mundo diferente.

- Diferente? - Ri-me. - Diferente como? - E, claro, neste ponto preciso começamos a mentir e dizemos: - Não é um lugar assim tão imponente, se é isso que estás a imaginar. Não é um mundo assim tão glamoroso. Nem sequer é um mundo. Apareço na televisão uma vez por semana. Uma vez por semana falo na rádio. Com intervalos de algumas semanas apareço na imprensa escrita, nas páginas de trás de uma revista lida por vinte pessoas, no máximo. O meu programa? É um programa cultural das manhãs de domingo. Ninguém o vê. Não é um mundo assim tão especial que possa causar preocupação. Posso levar-te para esse mundo com facilidade. Por favor, fica comigo.

Ela parece estar a pensar no que eu disse, mas que espécie de pensamento poderá ser?

- Está bem - diz -, por agora. Por esta noite. Mas nunca pode­rei ser tua mulher.

- Combinado - respondi, mas pensei:

Quem te pediu que fosses minha mulher? Quem levantou essa questão? Eu tenho sessenta e dois anos e ela tem vinte e quatro. Mal lhe toquei no rabo e já diz que não pode ser minha mulher? Não sabia que continuavam a existir raparigas assim. Ainda é mais tradicional do que eu imaginava. Ou talvez mais estranha, mais invulgar do que imaginava. Como viria a desco­brir, Consuela é uma mulher comum, mas sem ser previsível. Não há nada de maquinal no seu comportamento. É ao mesmo tempo específica e misteriosa, e estranhamente cheia de peque­nas surpresas. Mas, sobretudo no princípio, foi-me difícil decifrá-la e, erradamente - ou talvez não, atribuí isso à sua cubanidade.

Philip Roth, O Animal Moribundo, Dom Quixote, 2006, p. 29 (tradução de Fernanda Pinto Rodrigues)

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